A magia de JVP e o mítico 6-3
O dérbi da próxima jornada promete aquecer tanto como o de 94. Independentemente de tudo, o futebol português promete aproximar-se de um jogo que ficará na sua história.
Ao fim de 29 jogos, tudo por decidir ainda. Faltavam 5 jogos, mas o dérbi estava ao virar da esquina. Na 30ª jornada, o Sporting recebia o rival no antigo Estádio José Alvalade. Chegando ao dérbi, o Benfica tinha 47 pontos, contra 46 do Sporting e 44 do Porto, numa época em que a vitória valia 2 pontos. Mas antes de olhar para aquele que é dos dérbis mais emblemáticos de sempre, faz sentido perceber o contexto que o torna tão especial. Recuemos ao verão anterior, a um dos verões mais quentes do futebol português.
O Verão quente de 1993.
A estreia da novela Verão quente na RTP não podia ter sido em melhor altura. O Sporting procurava acabar com uma seca de vários anos sem vencer o campeonato e as suas contas “verdes” foram um mote para o que acabaria por acontecer. O maior rival, Benfica, encontrava-se em “pré-Vietnam” e a instabilidade financeira sentiu-se dentro de campo. Paulo Sousa, menino querido da luz, sentiu-se atraiçoado pela forma como os encarnados trataram de si, não lhe conferindo a totalidade do poder no que tocava ao seu futuro. Paulo Sousa queria sair e, num dos episódios mais marcantes do Verão Quente desse ano, acabou por rumar ao Sporting, na companhia de Pacheco. O segundo, para além de salários em atraso, alegou motivos pessoais para sair do Benfica – algo que o próprio voltou a reiterar numa entrevista à Sapo em 2018 (https://desporto.sapo.pt/futebol/primeira-liga/artigos/pacheco-recorda-verao-quente-de-1993-sair-do-benfica-foi-ma-opcao-de-carreira). O caldo entornou. Futre havia saído para o Marselha, Paulo Fonseca e Pacheco ficaram por Lisboa e Rui Costa e João Vieira Pinto foram abordados para seguirem os dois ex-colegas de balneário. JVP chegou mesmo a ter um compromisso para seguir para Alvalade – fora esse compromisso que o fizera esconder-se em Torremolinos, para que o Benfica não o contactasse. O Verão aqueceu e a temperatura escalou: Rui Costa fintou as intenções do Sporting e JVP, numa finta Cruyffiana, acabou por regressar a Lisboa de vermelho. Sousa Cintra, na altura presidente dos Leões, chamou-o de imaturo. Esta foi a base para um arranque mais quente que nunca. DE um lado, um Benfica desfalcado, no plantel e sobretudo no orgulho, do outro, um Sporting pujante, com ambições e jogadores condizentes com as mesmas.
A roleta austríaca
O verão tinha trazido um outono verde. O Sporting arrancou o campeonato com 6 vitórias seguidas. Na taça Uefa, as primeiras duas eliminatórias foram passadas com sucesso. O empate frente ao Gil Vicente, o desaire no Bessa e a derrota frente ao Porto acalmaram os ânimos dos leões. Ao fim da 11ª jornada, Porto, Benfica e Sporting encontravam-se em igualdade pontual. No entanto, a derrota frente ao Casino Salzburg acabaria por ditar um ponto e vírgula na época sportinguista: a eliminação da Taça UEFA e o despedimento de Bobby Robson enquanto treinador do Sporting. Depois de vencer por 2-0 os austríacos em Alvalade, o Sporting…sportingou. Sofreu aos 47’ e, apesar de já estar a jogar contra 10, aos 90’. Ainda antes do fim do prolongamento, Capucho acertou por duas vezes no poste, mas isso não impediu o Casino Salzburgo de ganhar na roleta, com um golo aos 114’, onde a culpa não morre solteira: Paulo Torres demora uma eternidade para tirar a bola da área e, após um ressalto, Amerhauser chutou em grande estilo para o 3-0 final.
Dois jogos depois, derrota na Luz por 2-1. Nos 6 jogos após a derrota, o Sporting empata três. Depois desta fase, o Sporting arrancaria para uma série de 13 jogos sem perder, com 12 vitórias pelo meio. Antes de enfrentar o Benfica, havia ainda de perder frente ao Porto.
Verão Quente, outono frio.
Depois do verão duro, o Benfica começou a época a meio gás. Empatou 3 vezes, frente a Porto, Estoril e Beira-Mar. Apesar disso, a época foi-se encarrilando: Passou as primeiras fases da Taça das Taças, nos 15 jogos seguintes do campeonato venceu 13. Teve uma super eliminatória frente ao Leverkusen e, apesar da eliminatória frente ao Parma não ter corrido de feição, cehgou à 30ª jornada em 1º. Pelo caminho, havia vencido Sporting e Porto em casa e, apesar do empate frente ao Estrela na jornada anterior, saía na frente do campeonato no começo da jornada do dérbi.
O mítico 6-3.
Os números não são certos, Porventura, 70 mil pessoas juntaram-se na casa dos leões para ver o clássico dos clássicos. Apesar do favoritismo leonino, a equipa do Benfica não ficava nada atrás: JVP, Isaías, Mozer e Schwarz eram parte da equipa que encabeçava a classificação do campeonato vigente. Os encarnados, com uma camisola vermelha com o patrocínio do Casino Estoril entraram em campo ao som de uma multidão de assobios. O Sporting, aclamado.
Logo no pontapé inicial se percebeu o favoritismo atribuído. O Benfica seguiu com a bola mas os verdes rapidamente a roubaram e atacaram a baliza dos encarnados. Este foi uma constante inicial: o Sporting atacava enquanto o rival era remetido para a defesa da área.
O Benfica tinha dificuldades nas bolas paradas. Perante isso, aos 8’, Balakov bateu o canto que daria o 1-0. Cadete cabeceou e a bola ouviu os gritos sportinguistas de felicidade. Previa-se um jogo complicado para os adeptos visitantes até porque o Sporting continuou por cima de um Benfica sem ideias. Ainda antes da meia hora, Figo voltou a ameaçar a baliza de Neno num remate de meia distância.
O relógio bateu a meia hora. Minuto de génio. Depois de arrastar consigo dois jogadores, JVP vira-se, deixando os dois para trás – como havia feito ao Sporting no início da época – e chuta ao angulo superior da baliza. Indefensável.
Se o primeiro golo dos verdes e brancos havia surgido de canto, o segundo não seria muito diferente. O Sporting ganha um live fora de área, perto da zona de canto. Balakov cruza e, à frente de Neno, Figo desvia para dentro. 5 minutos depois do génio de JVP ter aparecido, o Sporting voltava a estar por cima.
Dois minutos depois, o génio. Depois de receber a bola à frente de um jogador do Sporting, João Pinto deixa um jogador para trás. Aproxima-se da área e, num gesto sublime, fere os rins de Vujacic, ficando de frente para a baliza do Sporting. O remate sai cruzado, ainda batendo no poste, e de novo, a igualdade.
Num livre que podia ser revisto por Nicolas Jover, treinador de bolas paradas do arsenal, o Benfica chegou pela primeira vez à vantagem no jogo. A bola que se esperava cruzada para a área é jogada rasteira para a lateral. O cruzamento de Paneira é feito para o segundo poste onde Isaías aparece, desviando para a pequena área. Quem finaliza? Claro, João Pinto.
A segunda parte haveria de começar como a primeira terminara. Se aos 44’, assistira, aos 48’ acabaria por marcar. Paneira faz uma corrida soberba pela direita, passando um jogador da casa na corrida e, por ironia, é Paulo Sousa quem se aproxima da bola para a cortar. Num momento confrangedor, Paulo Sousa falha a bola, deixando Paneira continuar na sua rota de autoestrada pela direita. Chegando à área, cruza rasteiro e JVP, que não é egoísta, deixa a bola passar por si para chegar ao ponta de lança dos encarnados. Isaías põe mais um prego no caixão sportinguista. Mais um golo em Alvalade. Mais ainda faltava jogo.
Outra vez pelo flanco direito, João Pinto recebeu um passe do qual prontamente se esquivou. Vujacic não esperava a simulação de JVP e deixa a bola passar. A avenida que o Sporting tinha à esquerda voltou a aparecer – o famoso “erro tático de Carlos Queiroz” – e João Pinto teve apenas de correr até às proximidades da área a adversária. Depois, foi ser João Pinto. Parou a corrida, desequilibrou o defesa e cruzou de trivela para Isaías que não marcou o golo que deu início ao cheiro de goleada. 5-2 para o Benfica.
Se tivéssemos de adivinhar como é que o 6º golo surgiria, todos diríamos que começaria algures pelo flanco direito do Benfica. Não somos tolos. 2 para 1 na ala, cruzamento para a centro da área e, numa fase em que tudo corria bem aos encarnados, Hélder chutou de primeira para o ângulo da baliza sportinguista.
O pé esquerdo de Balakov bateu o penálti que fecharia o 6-3, já ao minuto 80, para inércia dos da casa.
O Benfica acabaria por ser campeão e o Sporting, humoristicamente, ficaria pelo 3º lugar. O Verão quente acabaria por dar origem ao 14 de maio – um equivalente no mundo benfiquista ao 13 de maio do mundo católico - que se tornou num dia de celebração de um génio maior: João Vieira Pinto.
O dérbi da próxima jornada promete aquecer tanto como o de 94. São muitos os resultados que terminam com um campeão. O Sporting pode apagar a Luz, o Benfica pode por os sportinguistas a dizerem “para o ano é que é”. Independentemente de tudo, o futebol português promete aproximar-se de um jogo que ficará na sua história.
Pedro Brites