A Perfeição do Caos
Newcastle, Real Sociedad, Lens e outros: todos convidados inesperados na mesa da Liga dos Campeões.
A definição de “Surpresa”, segundo o dicionário Priberam:
substantivo feminino
1. Ato ou efeito de surpreender, ou de ser surpreendido.
2. Espanto (causado por algo inesperado).
3. Sobressalto; perturbação; pasmo.
4. Sucesso inesperado, facto ou incidente inopinado.
Os adeptos adoram-nas, porque nos dão algo em que acreditar. Criam heróis de culto. Falamos de Éder enquanto um símbolo nacional porque desafiou as probabilidades num golo de difícil execução num jogo onde Portugal estava a ser dominado. Isto sendo um avançado com uma carreira mediana e cuja convocatória para esse Europeu foi questionada por muitos (“O Hugo Vieira está a fazer uma excelente época na Sérvia”).
Enquanto nós adoramos os heróis e as suas histórias de redenção, quem manda no futebol gosta de previsibilidade. Gosta de saber que os tubarões ficam por cima e que os outros ficam abaixo. Daí as tentativas de implementar uma Superliga. Daí a cedência da UEFA no novo formato da Liga dos Campeões a partir de 24/25. Para além de manter a ordem já instalada, a tendência até é a de tornar os ricos mais ricos e os não tão ricos mais pobres. Tanto com este novo formato (que dificulta surpresas, logo, o acesso a receitas de Champions), como alargando cada vez mais o calendário competitivo com mais jogos (fazendo com que quem tenha mais dinheiro possa ter plantéis maiores e mais preparados, tendo mais possibilidades de obter bons resultados e boas receitas), são formas de aumentar este fosso.
Para azar dos de cima, a época 22/23 esteve carregada de surpresas, especialmente quanto a clubes que vão jogar a Liga dos Campeões para o ano. O Newscastle de Eddie Howe surpreendeu porque, apesar de no ano passado terem sido adquiridos pelo Saudi Arabia Public Investment Fund (PIF), não cometeram loucuras proporcionais aos valores que se falavam na altura da compra do clube. Apostou-se na certeza de Trippier, na criatividade de Bruno Guimarães, na explosão de Saint-Maximin, entre outros. Venceram Arsenal, Man City, Tottenham, Chelsea e Liverpool ao longo da temporada. Fizeram lembrar os tempos de Alan Shearer (ou de Santiago Muñez, para os leitores mais cultos), e chegaram à principal competição europeia.
A Real Sociedad tem tido um projeto mais constante. Para além do excelente scouting e de aposta nos jovens (lançou Isak e Odegaard nos útlimos anos), tem o mesmo treinador desde 2018. Já ganhou uma Copa do Rei e vai a caminho da Champions, graças a magos como Mikel Merino, Kubo, o veterano David Silva, Guevara e não dá para esquecer Oyzarzabal, mesmo com as lesões deste ano.
Em França, o Lens agigantou-se e garantiu o segundo lugar, superiorizando-se a Marselha e Mónaco, e dando luta ao PSG. Numa equipa sem vedetas, Openda e Fofana destacaram-se. Em Itália, a Lazio e Sarri regressam a estes palcos, numa altura em que o futebol italiano se diversifica (três campeões em três anos e a Juventus perde o estatuto de candidato claro). Luiz Alberto e Milinkovic-Savic provam que merecem Champions sempre que tocam na bola. Romagnoli trouxe a segurança que tinha no Milan e Filipe Anderson reivintou-se. Na Alemanha, o União de Berlim é das histórias mais bonitas dos últimos anos: pela proximidade dos adeptos com o clube (onde rompe radicalmente com o rival Hertha, que desceu à Bundesliga 2), pela forma como subiram de divisão e chegaram à Europa em pouco tempo, pelo futebol de Diogo Leite, Becker, Öztunali e companhia, e pela tradição de natal do clube.
Nos Países Baixos, o Feyenoord de Arne Slot destronou o Ajax, muito graças à magia de Kökçu, alvo do Benfica. O Celtic já tinha estado presente na edição desta época, mas a equipa de Jota também é um outsider. Nos play-offs, o AEK (campeão da Grécia), o Molde e o Copenhaga também marcam presença. Para além deles, o Braga, que nos surpreendeu pela sua regularidade no campeonato, que tem tido boas campanhas na Liga Europa nos últimos anos e que tem Al Musrati, irmãos Horta, Iuri Medeiros e outros a jogar muito à bola.
A previsibilidade é secante para o adepto. É por isso que o mundo do futebol desesperou coletivamente a ver o Dortmund borregar o título da Bundesliga. Se o mundo do treino já está padronizado demais (como explorei neste texto), alguns também querem que no mundo dos resultados também seja assim. Idolatramos quem ganha muitas vezes porque é difícil fazê-lo. Se for fácil e previsível, qual é a piada? O caos tem uma certa beleza e a previsibilidade é uma destruidora de sonhos. O objetivo deve ser sempre desafiar as probabilidades, e nunca compactuar com elas. Por isso, a Inter está a um jogo de ser campeã da Europa. Por isso, é que o Newscastle, Real Sociedad e Braga vão ter a oportunidade de o ser para o ano.
João Blanco
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