Em português, como se escreve “projeto”?
Uma análise à criação, manutenção e fim dos projetos dos clubes portugueses.
É o tema do momento em Portugal. É triste, mas é a pura realidade em que se encontra mergulhado o futebol português. Num fim-de-semana marcado pelo começo da temporada 2024/25 nos campos espalhados por esse Portugal fora, o sentimento com o qual nos deitámos no Domingo à noite foi de confusão e surpresa. Como é que, sem estar sequer terminada a primeira jornada da Liga BetClic, existem já dois clubes sem treinador?
Apesar de ser atual, não é um tema recente, e há muito por onde pegar neste contexto. Inicialmente, o que é um projeto? Ora bem, para muitos clubes portugueses, essa é uma questão que agrega muitas dúvidas. Em Portugal, com exceção de pouquíssimos clubes da primeira divisão, a dança das cadeiras é do mais normal e aceitável que existe. Se as primeiras jornadas da liga (ou taças) não correm de acordo com o esperado, o treinador é convidado a abandonar o projeto que lhe foi prometido ao longo de todo o verão. E o mesmo sucede em qualquer altura da época desportiva.
Então, e qual é o motivo desta aparente facilidade em abandonar toda uma linha de pensamento e filosofia devido a alguns resultados menos conseguidos? Boa questão. Aliás, essa é a questão para a qual grande parte dos adeptos portugueses não consegue ter resposta. Podemos seguir pela vertente de uma necessidade de obter resultados rapidamente, onde os treinadores são contratados com a obrigatoriedade de “apresentar trabalho” a curto prazo, e que essa é a visão do clube, o que é válido (principalmente para equipas que lutam contra a descida). Nesse caso, porque foram Tozé Marreco (Gil Vicente) e Daniel Sousa (SC Braga) demitidos? A cultura em Portugal está definida e é bem visível. O pensamento é orientado para o resultado final, e não para o caminho que se faz para chegar a essel resultado final. Não existe a contratação de um perfil que se molde à filosofia e projeto do clube (uma espécie de Sérgio Conceição), procurando-se muitas vezes quem obteve resultados previamente em níveis semelhantes, ou simplesmente se encontra livre no mercado.
O papel das direções dos clubes deveria ser abordado com mais frequência quando se chama “à baila” este tema. Se os resultados não forem suficientes para acabar com a ténue barreira entre o desemprego e o balneário de um clube de primeira divisão, os despiques individuais entre direção e treinador tratam disso, como se pode ver no SC Braga. Após a saída de Artur Jorge (já de si polémica), este foi substituído pori Daniel Sousa, que vinha a desempenhar um trabalho de louvar com o Arouca, chegando à luta pelos lugares europeus.
Ora, como sabemos, o trabalho executado no Arouca foi de alto nível. Para além do excelente trabalho a nível tático desempenhado por Daniel, foi possível elevar jogadores como Rafa Mujica, Cristo González e Jason Remeseiro a níveis de excelência, com quase 50 golos marcados entre os três homens da frente. Logicamente, o trabalho executado por Daniel Sousa não foi o resultado de duas semanas de treino, ou de três vitórias em jogos amigáveis. O trabalho de Daniel Sousa resultou de uma linha de pensamento iniciada por Daniel Ramos, que iniciou a época na turma arouquense, e que foi continuada após a sua saída. Houve critério da direção do Arouca na escolha do substituto, determinada pelo projeto que procuravam seguir em 2023/2024. Com todos os ingredientes presentes, a construção de uma filosofia não teve dificuldade, inclusive acredito que, caso Daniel Sousa tivesse iniciado a temporada, o Arouca tinha chegado às competições europeias em 2024/25.
A sua contratação por parte do Braga não foi, por isso, uma surpresa. António Salvador antecipou-se a qualquer possível concorrente (os três grandes apresentavam dúvidas na manutenção dos respectivos técnicos) e fechou contrato com um técnico que prometia uma nova filosofia na Pedreira. Chegaram então oito reforços e deixaram o clube cerca de uma meia-dúzia de jogadores, o que indicaria mudanças significativas no plantel minhoto. A época começava mais cedo, dado os playoffs de acesso à Liga Europa. Após a eliminação do Maccabi Petah Tikva (7-0 no agregado), o Braga recebeu e empatou com o Servette e o Estrela da Amadora em casa, originando o despedimento de Daniel Sousa.
É completamente descabido existir uma explicação lógica para o sucedido, sem ser as já naturais divergências com a direção. O objetivo deste texto não é culpabilizar António Salvador por toda esta situação que é vivida em Portugal, mas sim chamar a atenção dos nossos leitores para uma clara ridicularização do prestígio da nossa competição interna. E numa altura onde se vêem por aí muitos adeptos na procura de argumentos para justificar a afirmação de que a liga portuguesa é superior à liga francesa, penso que seria mais adequado olhar para o campeonato brasileiro, onde esta é a prática corrente.
Com isto, não defendo que um projeto deve ser algo olhado a longo prazo, não, de todo. Existem projetos de uma temporada, de duas temporadas, ou de oito temporadas. No entanto, seja qual for a circunstância, é fulcral existir um projeto. É completamente irracional que um clube inicie a época com um treinador que se suporte num futebol atacante, pressionando alto, com um jogo agressivo e que, por via de resultados negativos, seja substituído por um técnico que defenda uma equipa agarrada ao jogo defensivo, com uma linha de cinco compacta, que procura ferir o adversário através de rápidas transições. Esta é a receita da instabilidade. Instabilidade física, onde a diferença de rendimento prejudicará os jogadores, instabilidade tática, onde todo um plantel tem de esquecer ideias que vinham a absorver de outro técnico, instabilidade psicológica dos jogadores e adeptos, sentindo-se “perdidos”, não só devido aos maus resultados, mas também a tantas mudanças. Por fim, a instabilidade geral que o clube atravessa quando existe uma mudança de técnico.
Quem não deve ser totalmente ilibado de culpas são os treinadores, apesar de neste aspeto, conseguir compreender os mesmos. O mercado de treinadores portugueses é vasto, existindo treinadores como Sérgio Conceição, Carlos Carvalhal (de regresso a Braga), Bruno Lage, Vasco Seabra, Daniel Ramos, Ivo Vieira, Pepa, Paulo Sérgio, António Folha, Jorge Simão ou até Moreno livres no mercado. Todos estes nomes estão à espreita destas vagas, que outrora já foram deixadas por eles em outras ocasiões. Muitas vezes, os contratos com os novos treinadores são fechados de um dia para o outro, que tempo há da estrutura para pensar em projetos? Que objeções ou exigências há da parte dos treinadores quanto ao plantel, questões táticas, apoio da direção ou objetivos de final de época? É quase nulo. Porque no final do dia, o mais importante é saber quanto dinheiro levarão para as suas famílias. Esta não é uma crítica direta, mas é um presságio daquilo que poderá acontecer no futuro, criando um ciclo vicioso como o que vivemos hoje em Portugal.
Clubes como o Sporting, Porto, Benfica (menos vincado), Rio Ave e Farense são (atualmente) exceções num campeonato onde o destino final está marcado no mapa, mas não há quaisquer indicações sobre como lá chegar. Com os despedimentos atuais, são 11 os novos treinadores na Liga Portuguesa. Impensável.
João Pinto