Essa mania de estender o braço
Durante as primeiras décadas do século XX, era evidente que o futebol se estava a tornar num fenómeno que movia massas, podendo ser útil para o crescimento dos regimes autoritários.
Durante as primeiras décadas do século XX, era evidente que o futebol se estava a tornar num fenómeno que movia massas. Essa massificação do futebol tornou a modalidade particularmente aliciante para grande parte dos regimes autoritários que, na altura, viam nas massas a força que alimentava a sua legitimidade.
Por volta deste período, em algumas partes do mundo, o desporto-rei deixava de ser património exclusivo das elites e entrava cada vez mais no quotidiano das populações das zonas periféricas. Desta forma a própria cultura do futebol, começou a expressar laços mais ligados à minoria e aos bairros – um “nicho” muito específico que era facilmente manipulado pelo regime.
É importante referir o facto de que o fascismo italiano, talvez tenha sido o primeiro regime a usar ativamente o futebol como forma de potenciar a sua ideologia.
A modernidade do regime fascista de Benito Mussolini refletiu-se, sobretudo, na aposta em ferramentas como o cinema ou a rádio – que eram plataformas ao serviço da propaganda fascista, assim como as vanguardas artísticas que proporcionavam um novo tipo de estética dentro do movimento. Também o futebol, movendo multidões e esgotando as grandes arenas da época, tinha de ser posto ao serviço do regime, tanto do ponto de vista da doutrinação como da própria teatralização e encenação do poder. Mais tarde, com a consolidação do “Il Duce” no poder – a construção de estádios monumentais e modernos, sobretudo para acolher competições internacionais, insere-se precisamente na cenografia fascista, que dava palco à impotência, enquanto nutria uma demonstração dos rituais da grandeza, intemporalidade e invencibilidade do regime.
Não só o futebol, mas também, outros eventos desportivos eram oportunidades perfeitas para exibir os princípios e valores de um regime que tinha nas demonstrações de virilidade e na aposta de uma juventude saudável e respeitada, dois dos seus principais pilares. Que era precisamente, o desporto, em particular as modalidades olímpicas, que servia a pedagogia fascista ao pressupor que disciplinar o corpo era também disciplinar o espírito.
Os grandes desfiles políticos, as paradas militares e até mesmo as escolas e os locais de trabalho, passam a ser espaços para a realização de atividades físicas, que eram devidamente desenhadas do ponto de vista ideológico. Mas foram as competições internacionais que melhor espelharam esta politização do desporto, precisamente por serem um momento inigualável de afirmação externa. O Campeonato do Mundo de Itália de 1934 e as Olimpíadas de Berlim de 1936, por terem sido ocorrido no período hegemónico dos regimes autoritários, simbolizaram o culminar do seu ideário.
Inicialmente, o futebol era encarado com alguma desconfiança, precisamente por não lhe ser reconhecido o mesmo potencial moralizante que teria, por exemplo, a ginástica ou o atletismo. No entanto, funcionava perfeitamente como um terreno propício que acabava por mobilizar grande parte das multidões em torno dos símbolos e das palavras de ordem do regime. Além disso, desde cedo o desporto-rei começou a forjar um moral que acomodava o discurso polarizador do fascismo (“nós contra eles”).
Os próprios meios de comunicação que prestavam cobertura a estes eventos adensavam ainda mais este discurso. Algo bastante recorrente seria a utilização de metáforas bélicas para descrever as diferentes ocorrências do jogo que, mais do que uma simples partida de futebol, era um confronto entre nações, regimes, ideais e até mesmo entre “raças”. Portanto, os relatos desportivos tinham um papel fundamental nesse aspeto, e era muito importante que fizessem dos remates “mísseis” e das grandes defesas “paradas” – o futebol, no campo e nas bancadas, transformava-se numa sublimação da guerra.
Futebol, Fado e Fátima
Falando agora em específico do contexto português, o futebol continua a ser considerado um dos “três efes” da doutrina com a qual o Estado Novo se muniu para garantir o apoio popular e, por consequência, a sua própria longevidade. No entanto, a relação da ditadura com o fenómeno futebolístico esteve longe de ser pacífica.
Tal como acontecia nos regimes autoritários europeus, a prioridade da política do Estado Novo passou pela consumação de atividades de cariz não competitivo, que fossem capazes de educar os valores do regime – e segundo os ideólogos do fascismo português, o futebol não encaixava nesses parâmetros. A própria realidade do futebol, com rivalidades clubísticas e bairristas, fazia da modalidade algo incompatível com a cultura desportiva de sabor nacional.
No entanto, à semelhança da Itália de Mussolini ou da Alemanha de Adolf Hitler, também Salazar acabou por se aperceber que as paixões que o futebol proporcionava podiam ser usadas para exacerbar as normas etnonacionalistas nas quais o seu regime se amparava. E, por isso, o Estado Novo procurou associar-se ao futebol para validar a legitimidade de alguns dos seus pilares ideológicos, sobretudo perante observadores externos.
A prestação da selecção nacional nos Jogos Olímpicos de 1928, por exemplo, chamou a atenção de António Ferro, um dos mais dedicados propagandistas do regime, que tinha como referência modelo fascista italiano. Na cobertura que faz de uma das partidas, contra o Chile, e confessando um total desconhecimento em relação às regras do jogo, revela-nos aquilo que efectivamente o atraiu para o espectáculo:
“Não são atletas de feira, com músculos de tabela: são atletas nos sentimentos, no orgulho da sua raça, na consciência do seu dever. A bola, para os nossos jogadores tem a forma do globo, tem o tamanho do mundo, como se fosse Portugal a sacudir a terra, a afirmar-se, a retomar, altivamente a sua velha posição.”
Estas foram algumas das situações que regiram a ligação entre o fascismo e o futebol – certamente muitas outras ficaram por mencionar, mas é tendo presentes estas lutas, de ontem e de hoje, que conseguimos perceber até que estamos perante muito mais do que um jogo. O futebol é, em diversos sentidos, a erupção do inesperado, mas há que combater esse miserável vício de estender o braço.
Ishan Lacmane
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