Há beleza na queda
A explicação do porquê de a derrota ser o resultado mais belo e fascinante do futebol.
Bem-vindos ao “É um café e o jornal” a nova crónica do 78. Semanalmente, escreverei uma crónica para esta rubrica. Nem sempre será café, nem sempre será jornal. As crónicas “café” serão mais curtas, rápidas, possivelmente, mas não necessariamente, sobre um tema mais atual. As crónicas “jornal” explorarão mais a fundo um qualquer tema. O objetivo será pedir, pelo menos, um jornal por mês, e nas restantes semanas, servir cafés. Espero que gostem.
Foi a ouvir um podcast no início da semana passada que me dei conta do quão mística e bela, pode ser a derrota. No podcast, um dos intervenientes fala sobre como a derrota o fascina mais que a vitória. Depois de dormir sobre o assunto, concluí que acabara de perceber o padrão que me vem perturbando desde há tempos.
Quem já teve o azar de me ler por aqui, poderá ter percebido que sou um jovem adepto do FC Porto. Como tal, já tive a oportunidade de vivenciar várias conquistas que o meu clube fez – a Champions (mesmo ainda não tendo idade para recordar esse momento), a liga Europa e a época de Vilas Boas, o 5-0 frente ao Benfica, o golo do Kelvin e o do Herrera, as épocas de Jesualdo e o tri alcançado com Vitor Pereira…pode-se se dizer que acabei por ter sorte neste meu destino. Até enquanto português, já pude viver os dois únicos títulos (sendo um deles algo insignificante, sejamos honestos) que a seleção já venceu. Resumindo: sou uma pessoa com sorte.
E é precisamente por este hábito de vencer e de estar habituado a ganhar títulos que os momentos que me marcaram mais foram, com poucas exceções, as derrotas. A minha primeira memória vívida de futebol é o golo do Ronaldo, do meio-campo, no Dragão. A minha segunda memória vívida? Já escrevi sobre isso aqui: a derrota por 3-0 frente ao Benfica na final da taça da liga em 09/10. E por aí em diante. Sempre fui uma pessoa mais traumatizada com a derrota que acalentada pelas vitórias. Em 2010, sei em que lugar da mesa da minha avó estava sentado quando Portugal perdeu contra a Espanha. Em 2012, perante o mesmo cenário, sei perfeitamente o que comi (um bife com batatas fritas e molho barbecue) no restaurante do hotel em que estava – em Sevilha. Sei exatamente o que senti nessa noite. Sei as cores das pulseiras de elásticos que estava a fazer, em 2014, quando, em casa da minha avó, vi Portugal perder por 4 golos frente à Alemanha. Sei que eram os padrões de algumas das seleções desse mundial (lembro-me dos da Espanha, da Alemanha de Portugal e dos Camarões). Quase que estou para dizer que sei o número de lágrimas que me caíram quando o Bayern fez o terceiro de seis golos numa noite de 2015, frente ao Porto. Mas não chegou a tanto. E foi graças àquela ideia, de que a derrota é muito mais fascinante que a vitória, que percebi o segredo sobre a forma como, desde criança, vejo e encaro o futebol. Mas não serei só eu.
Olhemos para o golo do Kelvin. Será que a euforia do golo perseguiu o Kelvin da mesma forma que a derrota, naquele jogo, perseguiu Jorge Jesus, ajoelhado no Dragão? Será que os Portistas acordam a meio da noite em euforia quando recordam, em sonhos, o golo aos 92’, ou são os benfiquistas que ainda hoje vivem amargurados com essa derrota? Eu falo por mim: a derrota na taça de Portugal frente ao Braga em 2016 foi muito mais marcante que a vitória, da mesma competição, frente ao mesmo adversário, no final da época passada.
Isto acontece porque a derrota fica. Ela permanece para sempre, nos corações, no ranger de dentes, no olhar desiludido. No punho cerrado de nervos. No morder de lábio enquanto olhamos incrédulos para o festejo dos adversários. Ela fica. Ela deixa-nos a pensar. “E se…?E se não tivesse sido assim? E se eu, que nada tenho a ver com o jogo, tivesse visto este jogo com o cachecol que nunca perdeu nenhum jogo em que foi usado e com a roupa interior que me dá sorte?” Porque a derrota fica. Fica para ser usada como gasolina e inflamar o espírito num próximo embate. Fica, porque nunca vai. Porque nunca mais poderemos recuperar os momentos que antecedem o instante em que, para mal dos nossos pecados, o árbitro declara o fim da contenda.
A vitória é o oposto. É uma matéria inflamável que queima a alta velocidade. É um grande incêndio que, numa chama imensa, se apaga pouco depois. O fogo da derrota perdura até já não haver floresta, nem possibilidade de que outra nasça no seu lugar. A celebração do golo dura menos que a angústia da derrota no caminho para casa, após o jogo. O Maracanaço e o 7-1 são traumas que, me arrisco afirmar, nunca o Brasil conseguirá ultrapassar. Nem que vença 10 mundiais seguidos. O som do silencio no Maracanã no coroar uruguaio será mil vezes mais forte, mais eterno e mais intenso que qualquer celebração feita pelos brasileiros, em matérias de futebol. Por muito que ganhem, aquele mundial de 1950 e aquela meia final frente aos alemães ficarão para sempre por ganhar.
A derrota invoca, como já disse, o “E se…?”. É por isso que ele ganha uma casa – ela corrói e arranja um espaço para si em cada coração ferido. Ela mantém-se eterna porque o perdedor irá, num canto da sua mente, guardar um espaço dedicado apenas a pensar no arrependimento e na possibilidade que já não existe. Acabou, morreu ali há tempos, não há nada a fazer. Mas não. O nosso cérebro irá sempre procurar algo. Uma falha, um momento. Uma possibilidade de refazer o que hoje, aparece nos almanaques e nos livros de história.
Há algo mágico na derrota. Ver o jogador que nunca mais ganhará aquele jogo. Observar o adepto que, ali mesmo, naquele instante, ganhou uma amargura para vida. Ver, aquando do penálti marcado ou falhado, os olhos a fugirem para o guarda-redes deitado no chão, inconsequente, ou, por outro lado, o marcador, a encarar o chão por vergonha ou a baliza onde a bola não entrou. Os violinos e os pianos tocam na derrota. Melodias tristes e dramáticas, muito mais fascinantes que o rock n roll da vitória. Os caminhos que já não se vão cruzar. O jogador que perde a oportunidade de vencer aquilo que nunca mais estará ao seu alcance.
Vejamos os treinadores. Os que destroem um clube serão para sempre recordados. Os perdedores. Os vencedores? Ninguém se esquece deles…exceto quando vêm as derrotas. Que o diga Ranieri. Depois de fazer algo muito mais que impensável, a roçar o impossível, a má forma da sua equipa foi o suficiente para se ditar o fim da linha e o fim da sua história.
O que será mais histórico? O Botafogo ganhar o título da liga ao fim de 28 anos ou a possibilidade de o perder, depois da imensa vantagem que teve? Quanto tempo duraria a felicidade das celebrações da possível vitórias, quando comparado com o tempo que duraria o, cada vez mais provável, desabar das aspirações históricas. Ser campeão ao fim de 28 anos ou, 28 anos depois, tendo a oportunidade de ser campeão, desperdiçar uma vantagem de 13 pontos ao ganhar apenas 3 jogos dos últimos 16 disputados, vendo o seu sonho cair por terra? Qual marcaria mais a história?
Não é fascinante a falha do Bryan Ruiz? Haverá algo mais poético que um falhanço tão tremendo, num momento tão importante e que poderia ser tão decisivo? Haverá algo mais memorável que este falhanço? Porque, para infelicidade do próprio, ele deixou de ser Bryan Ruiz. Passou a ser o homem que falhou aquele lance. Quantos adeptos do verde e branco ainda hoje pensam no que teria acontecido se aquela bola tivesse entrado?
Haverá maior verso que aquele que foi escrito quando Steven Gerrard, herói em Liverpool, se tornou um dos maiores culpados pela derrota no campeonato de 2014, onde a sua equipa poderia acabar com um jejum de 24 anos? Haverá algo mais literal que a escorregadela que Gerrard dá e que permite ao início de um pesadelo sem fim?
No meio disto tudo, há algo de belo. Algo de bonito, de intrigante, que fica. Pode ser doentio, mas há algo na imagem de Baggio, de cabeça para baixo, que me intriga. O homem que morre de pé. O homem que morre, mas que vive para ser perseguido pelo erro, eternamente. O relato em italiano, numa voz com um tom de frete, de obrigação por ter de dizer qualquer coisa, embora lhe prenda, na voz, uma ausência total de vontade de falar:
“Alto. Il campionato del mondo é finito. Le vince il Brasile.”. Fim
Talvez, o que me fascine seja o carregar da dor, nestes momentos. O Baggio, nos EUA, por ter chutado a bola uns míseros milímetros mais abaixo que o suposto, assinaria a sina de carregar a tristeza de toda uma nação. É incrível, o segundo em que o estádio rompe o silencio expectante e, naquele momento, faz o mundo desabar sobre os 206 ossos de Baggio. Lá está, chamem-me doentio, mas há algo de bonito e poético nisto. O homem que nunca mais vencerá a derrota deste dia. Há algo de belo nisto. Há algo de belo no fim dramático.
Em Itália, diz-se: “Socrate morì avvelenato, Nietzsche morì in preda alle allucinazioni e Baggio morì in piedi”, que significará algo do género: Sócrates morreu envenenado, Nietzsche morreu com alucinações e Baggio morreu de pé. Isto tudo porque, no fim, há beleza na queda.