Lições do Mundial de 2023
Um mês depois do fim do campeonato do Mundo, falamos sobre a aula que o futebol feminino tem dado dentro e fora de campo nos últimos meses.
Somos privilegiados. Entre novembro de 2022 e agosto de 2023 pudemos assistir por duas vezes ao mais emblemático torneio do futebol mundial, primeiro jogado no masculino e depois no feminino.
Em Portugal, as celebrações começaram logo em fevereiro. A seleção nacional de futebol feminino apurou-se pela primeira vez para a competição ao vencer os Camarões por 2-1 nos play-offs. Num grupo composto por Vietname, Estados Unidos e Países Baixos avizinhava-se tarefa difícil para as Navegadoras, mas deixaram o Mundo a seus pés quando se impuseram, perante milhões de espectadores, às mais tituladas de sempre através prestações individuais sublimes - a de Ana Borges, por exemplo - e um banho tático que deixou as norte-americanas a jogar com uma linha de 5 à defesa.
Foi um Mundial de novos ares e recordes: 32 equipas disputaram a prova, houve uma final inédita entre Espanha e Inglaterra, 1.978.274 pessoas assistiram aos jogos no estádio, 2 mil milhões de pessoas acompanharam a competição, contando-se ainda um total de 163 golos marcados. Além dos dados, que parecem apontar para um crescente interesse económico e desportivo do futebol feminino, todos relembramos os vários vídeos dos adeptos australianos a vibrar com as suas jogadoras. Nos estádios, nas ruas e até mesmo a bordo de um avião, as Matildas não poderão reclamar da falta de apoio dos seus compatriotas.
Por cá, vão havendo tímidos sinais de mudança. Houve um investimento da Federação Portuguesa de Futebol para introduzir a tecnologia da videoarbitragem na Liga BPI, algo que era apenas utilizado em contextos de finais da Supertaça, Taça da Liga e Taça de Portugal. Para a época 2023/2024, os prémios dados na competição rainha triplicaram, passando a poder atribuir-se 806 mil euros até à sexta eliminatória. A Supertaça de 2023 que colocou frente-a-frente os eternos rivais Benfica e Sporting foi muitíssimo bem disputada de parte a parte e evidenciou um nível de competitividade que deixou 2.7 milhões de portugueses presos ao ecrã por quase 3 horas, um novo recorde de audiências que superou até as expectativas dos mais ambiciosos.
Os passos para uma progressiva profissionalização do futebol feminino continuam em marcha, contudo, tudo isto ainda está longe de configurar um cenário idílico. A febre que acompanhou o Mundial da Austrália e Nova Zelândia não corresponde ainda à realidade vivida na maioria dos países, ligas e federações.
Em Portugal, casos como o do Länk Vilaverdense - as jogadoras iniciaram a época com salários em atraso - e o do Torreense - por constrangimentos financeiros e falta de apoios, a SAD do clube admitiu em comunicado ter equacionado “terminar o trabalho que tem vindo a realizar em prol do desenvolvimento do futebol feminino já na próxima temporada, atendendo à enorme discrepância que existe entre os custos da operação, comparativamente aos apoios obtidos junto das entidades competentes" demonstram isso mesmo.
Internacionalmente, o caso Rubiales roubou o palco à conquista das jogadoras espanholas, as mesmas que há anos lutam contra uma federação que tantas vezes se posicionou contra as suas próprias atletas. Esta será a história mais mediática, mas bastará uma rápida pesquisa para perceber que a falta de apoios por parte das maiores entidades do futebol vai muito além fronteiras.
Mais do que falarmos de rendimento desportivo, temos de ter em atenção as reivindicações destas mulheres. O mais difícil parece ser mesmo ouvi-las e compreendê-las.
“O Mundial das primeiras vezes”
Este Mundial apresentou-se como um “Mundial das primeiras vezes”. Foi a primeira edição da prova a contar com 32 seleções, deixando para trás o formato de 24 equipas utilizado nas duas edições anteriores e chegando ao dobro de participantes do que tivemos até 2011, quando os Campeonatos do Mundo de Futebol Feminino contavam apenas com 16 equipas. Assim, implicou também na primeira vez de diversas seleções nesta que é a prova máxima, com oito equipas estreantes — um quarto do número total de participantes.
O objetivo dessa ampliação era justamente dar a mais países a possibilidade de realizar o sonho de chegar ao torneio. Contudo, tratando-se de uma modalidade ainda emergente e bastante estereotipada, criou-se uma ideia de que aumentar o número de equipas iria apenas implicar no desequilíbrio competitivo da prova. A recorrer às palavras de Gianni Infantino, «Diziam que não ia dar certo, que o nível era muito diferente e que iríamos ter resultados de 15–0, o que seria mau para a imagem do futebol feminino».
Porém, na prática, o Mundial apresentou o oposto. Nesta edição, tivemos uma queda na média de golos marcados por jogo (nos 90 minutos), passando de 2,77 em 2019 e 2,79 em 2015 a 2,58 em 2023. Houve também cerca de 23% dos jogos a terminar em empates — valor semelhante à média de 2015 e superior aos 12% de 2019 — e um aumento do número de equipas que conseguiram clean sheets, isto é, terminar um encontro sem conceder golo: 43%, valor que supera bastante os 33% em 2019 e 30% em 2015. Estes fatores claramente que se deu um aumento na competitividade, não a diminuição que tanto se especulava.
A nível dos resultados em si, a ideia do “Mundial das primeiras vezes” mantém-se: os Estados Unidos conseguiram a sua pior participação de sempre, sendo a primeira vez que não vai pelo menos ao pódio; O estreante Marrocos, a África do Sul e a Jamaica conseguiram o apuramento aos oitavos pela primeira vez; a Colômbia estreou-se nos quartos; a Austrália alcançou a primeira meia-final de Mundial da sua história e Inglaterra e Espanha chegaram ambas pela primeira vez numa final de Campeonato do Mundo, com as espanholas a conseguirem o título inédito.
Numa competição com tantos feitos históricos, fica uma clara mensagem de que o futebol feminino é de alta-competição. Este Mundial foi um sucesso a nível futebolístico: o surgimento de novas estrelas, despedida de grandes lendas, queda gigantes e ascensão de novas seleções… No fim, este Mundial serviu para mostrar o Futebol Feminino como um produto altamente competitivo, que é já uma realidade e consegue ter um potencial ainda mais brilhante. Um produto que merece investimento.
Não foi à toa que a FIFA considerou a competição deste ano como a maior da história. Sem dúvidas o foi. Para o futuro, espera-se que este Mundial seja um ponto de virada em termos de investimentos na modalidade.
A questão do VAR
O “Mundial das primeiras vezes”, como anteriormente referido, apresentou novas dinâmicas acerca do tema que tanto ‘amamos’ ou detestamos de debater - arbitragem, e a utilização/envolvência de VAR.
As decisões tomadas com recurso a equipa de vídeo arbitragem (VAR) tiveram direito a explicação tanto no estádio, tal como nas transmissões televisivas pelo mundo em direto - um processo, nas palavras de Pierluigi Collina (ex-árbitro lendário, e presidente do comité de arbitragem da FIFA) para tornar o processo de decisão num ‘processo mais transparente’.
Após testes iniciais no Mundial de Clubes, e Mundial de Seleções Sub-20, este Mundial feminino acabaria por ser o primeiro de alta exigência e importância, devido à dimensão da competição e escrutina dos espectadores.
Mas como em tudo na vida, houve prós e contras na introdução, positivos e negativos no resultado pós-execução.
Primeiro, um exemplo onde correu mal. Espanha x Zambia, Eden Park. O eventual quarto dos cinco golos marcados no encontro mereceu revisão do VAR, árbitra Oh-Hyeon Joeng naturalmente acabou por ser a voz da decisão tomada. Validou-se o golo, onde Joeng anunciou…um fora de jogo…rapidamente corrigido com uma sopa de palavras para sim, anunciar a decisão realmente tomada. Perante caras confusas, houve festejos no fim.
Afinal, pode não ser particularmente realista ou esperto esperar um nível de inglês, ou naturalidade em comunicar perante as reações de milhares no maior palco do jogo feminino. Afinaram-se detalhes no processo, mas só com a prática os árbitros conseguirão interiorizar cada vez mais esta rotina de comunicação.
Esta iniciativa vai ao encontro dos objetivos da FIFA no sentido de promover ações pedagógicas e formativas que contribuam para melhor esclarecer jogadores, treinadores mas também os adeptos nos processo na tomada de decisões fulcrais durante os jogos - algo admitidamente muito bem-vindo e agradável, apesar das dúvidas acerca da execução e alguns dores de crescimento
A pressão em cima da arbitragem aumenta no momento (apresentar uma decisão perante milhares ou milhões, onde metade nunca estarão satisfeitos com a decisão, naturalmente não é nada fácil) mas o objetivo é educar, e retirar a possibilidade de escrutínio acrescentada no período de e pós-decisão.
Aumenta-se a tensão perante o anúncio do árbitro, e envolve-se o fator humano com palavras de quem nunca ouvimos, mas sempre critica-se.
Longe de perfeito, mas uma nuance bem interessante e educativa para manter no período experimental, e introduzir aos poucos. Acrescentou neste mundial, e várias vezes viu-se a necessidade e os benefícios da tecnologia.
O poder e potencial de apenas partilhar as palavras pelo microfone…
A melodia da despedida no outro lado do mundo
O Campeonato do Mundo Feminino marcou a despedida de várias lendas do futebol feminino. Comecemos por aquela que é apelidada como a “rainha do futebol”. Aos 37 anos, a lenda Marta Vieira da Silva, despediu-se com uma presença cinzenta da seleção brasileira, em Campeonatos do Mundo. No currículo conta com seis participações; 15 golos marcados e uma história apaixonante. Infelizmente os deuses do futebol não a ajudaram a vencer uma grande competição internacional com o Brasil, apesar de ter três Copas Américas e dois Jogos Pan-Americanos; a nível internacional a seleção canarinha bateu sempre na trave na hora de conquistar os grandes títulos como o mundial ou as medalhas nos Jogos Olímpicos. Mas que não se caia no erro de resumir a carreira da Marta a títulos ou golos; Marta é apelidada por todos como a rainha do futebol, por ter inspirado gerações atrás de gerações a lutar pelo futebol feminino, a lutar e pela presença da mulher no futebol, e para que o futebol feminino tivesse visibilidade. Através das fintas, dos golos, da magia e das “voltas ao mundo” Marta Vieira da Silva inspirou muitas meninas, a querer ser um dia como ela; é impossível pensar em futebol feminino e não pensar nela.
Van Der Gragt, jogadora que não traz memórias muito positivas a Portugal, já que foi a jogadora que marcou o golo que ditou a derrota lusa no jogo da estreia em Campeonatos do Mundo, também se despediu dos relvados, na Austrália. A defesa central de 31 anos decidiu encerrar a carreira, para surpresa de muitos adeptos. Campeã da Europa com os Países Baixos em 2017, Van Der Gragt disputou mais de 100 jogos com a Laranja Mecânica, e deixa um legado extraordinário por onde passou. O último clube onde jogou foi o Inter de Milão, onde apesar de ter estado apenas uma temporada, conquistou o coração de todos os adeptos.
Ícone do futebol feminino, e referência para várias gerações de mulheres, Megan Rapinoe também realizou os últimos minutos com os Estados Unidos. A avançada de 38 anos vai pendurar as botas no final da temporada da NWSL, o fechar de um ciclo brilhante: dois campeonatos do mundo, 1 medalha de ouro nos Jogos Olímpicos, Ballon d’Or, FIFA Player of The Year e muitos outros prémios individuais e coletivos. Conquistou tudo tanto a nível individual e como coletivo, dentro das quatro linhas, no entanto apesar de todos esses troféus, Rapinoe destacou-se por ser uma jogadora com uma voz ativa, onde sempre defendeu os direitos das mulheres, as causas sociais em que acreditava usando a sua visibilidade para dar voz aos problemas que a rodeavam seja no futebol, seja na sociedade.
A estrela canadiana Christine Sinclair também realizou o seu último mundial da carreira. A avançada de 40 anos protagonizou uma carreira extraordinária e tocou o céu ao conquistar os Jogos Olímpicos com o Canadá, em 2021. Já representou a seleção canadiana mais de 326 vezes e conta com mais de 190 golos. Foi uma embaixadora do futebol no seu país, e tem uma carreira extraordinária na NWSL onde representa o Portland Thorns há 11 épocas. A Nova Zelândia e a Austrália foram palco de várias despedidas: Gaëlle Thalmann, guarda-redes histórico da Suíça, é outro dos nomes que pendurou as botas após o fim da competição.
Olhando para Portugal este foi possivelmente o último mundial de Carolina Mendes e Sílvia Rebelo, ou até de nomes históricos como Ana Borges, Carole Costa ou Dolores Silva. Para muitos, onde me incluo, o Campeonato do Mundo de 2023 marcou um antes e depois do futebol feminino; os recordes de assistências, as audiências televisivas, a visibilidade do futebol feminino é cada vez maior, no entanto não nos podemos esquecer quem o ajudou até aqui. Marta Vieira da Silva, Megan Rapinoe e Christine Sinclair foram durante muitos anos o estandarte do futebol feminino, e merecem todos os créditos e visibilidade por isso.
Matilde Pinhol, Lucas Lemos, Kevin Fernandes e Cristiana Pina
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