Uma boa forma de ilustrar a minha relação com os números, e para dar o pontapé de saída ao meu primeiro texto para a newsletter d’Os Panenka, será dizer que este texto, ao invés de escrito segundo o novo ou antigo Acordos ortográficos, foi escrito, na verdade, no Excel.
Hoje, por isso mesmo, escrevo-vos um pouco sobre um projeto que tem os números como base e com o qual tenho uma relação de amor-ódio, por razões que vou elencar ao longo do texto. Tudo começou no ano de 2005, quando a gigante das bebidas energéticas, a Red Bull, decide investir no futebol do seu país natal, com a compra do SV Austria Salzburg.
Algo definido desde o momento zero do investimento era a adoção do nome da marca no novo nome do clube, e assim surgiu o, agora bem mais conhecido que outrora, Red Bull Salzburg. Esta decisão, por motivos mais do que compreensíveis, motivou grandes protestos e desagrado por parte dos adeptos. Imaginem os vossos clubes com o nome dos principais patrocinadores (um Sporting Clube Nike, um Fly Emirates e Benfica, ou um Betano Clube do Porto, …). Até dá arrepios.
Este desagrado só acalmou quando começou a ser visível, não só o investimento, como também o sucesso que o clube alcançou após essa compra, por parte da Red Bull. Para se ter bem noção da dimensão do sucesso, o clube entre 1933, ano da fundação, e 2005 tinha vencido um total de quatro títulos austríacos e desde 2005, ou seja, em 16 épocas, o clube conquistou 12 títulos e apenas por uma vez ficou fora do pódio. Sucesso gritante, que chegou para silenciar mesmo os mais céticos. Outra das grandes conquistas deste clube, sobretudo pelo que isso significa no plano estratégico do projeto, foi a conquista da UEFA Youth League, no ano de 2016-17
Este, por ter sido o primeiro e, também por isso, o mais controverso e surpreendente caso, foi o que me mereceu mais tempo de antena. A partir daqui, vou abordar, de forma mais transversal a todos os clubes, aquilo que faz deste projeto Red Bull um projeto tão bem-sucedido.
Ao dia de hoje, para lá do supracitado RB Salzburg, são já seis os clubes envolvidos com a marca austríaca, cujas fronteiras já há muito tempo se expandiram além Áustria e, inclusive, Europa. RB Leipzig (Alemanha), FC Liefering (Áustria), New York RB (Estados Unidos da América), RB Bragantino (Brasil), FC RB Ghana (Gana), FC RB Luxembourg (Luxemburgo) são os clubes que a marca já adquiriu.
Sempre que me deparo com algum artigo ou penso sobre este modelo de gestão, uma voz qualquer ecoa-me na cabeça: “Moneyball”. Para quem não conhece este filme, recomendo vivamente, até porque é absolutamente impossível ter curiosidade por este projeto, pelo menos para estar a ler este texto até aqui, e não adorar o filme. Não fazendo spoilers, o filme aborda uma nova estratégia de identificação de talentos por parte de uma equipa de beisebol. Esta abordagem teve como base a medição do talento de forma objetiva. Aplicando, de forma muito simplista, alguns dos conceitos ao futebol:
“Tendo em conta que jogamos em 433 com os extremos abertos, quais são as características que devemos valorizar mais num Médio Defensivo? Será que determinado jogador, que até agora não teve qualquer tipo de sucesso na sua carreira, poderia beneficiar o nosso modelo de jogo? Se sim, encontraremos certamente muitos jogadores undervalued no mercado e que fugiram ao radar dos nossos principais concorrentes.” Este tipo de questões e conclusões eram algumas das que poderíamos encontrar se existisse um Moneyball versão futebol. E há: O projeto Red Bull tem tudo a ver com isto!
Todos dentro do projeto têm uma maneira muito coerente de ver o futebol, que tem por base um sistema de jogo bastante ofensivo e de pressão, e igualmente coerente do ponto de vista de gestão, baseado na contratação cirúrgica de jovens talentos. Para responder a estes dois grandes focos do projeto, criaram uma rede invejável de prospeção de talento. Alguns dos casos mais gritantes da mais-valia desta rede, e a capacidade que ela teve de responder a necessidades reais dos diversos clubes são jogadores como Haaland, Adeyemi, Upamecano, Konaté, Patson Daka, Timo Werner e Naby Keita, apenas para citar alguns, que passaram por Leipzig e Salzburg, que são os clubes com maior sucesso, e renderam largas dezenas de milhões aos cofres dos clubes. E o mais incrível é que o fizeram sem prejudicar minimamente o futuro, já que, mesmo com esta política de fábrica de talentos, têm uma tremenda capacidade de manter e aumentar o seu valor de mercado ao longo dos últimos anos, assente num crescimento sustentável de fazer invejar muitos clubes.
Falando agora um pouco da parte má deste tipo de projetos, eu sou um romântico do futebol. Acredito profundamente que os clubes não podem ser geridos como empresas, porque acredito profundamente que os adeptos não podem ser vistos como clientes, mas sim parte integrante do clube, que, como tal, devem ter voz ativa. Mesmo que isso faça com que, no final, se tomem, até, piores decisões. Chamem-me louco, mas chamem-me um louco democrático. Toda esta ideia de um grupo de investidores, neste caso a Red Bull, deter vários clubes também me cheira demasiado a cartel e a relações de competitividade potencialmente pouco saudáveis. Ainda está para nascer o dia em que dois destes clubes joguem entre si num contexto competitivo na Europa, mas, e aí como vai ser? Não existirão interesses para que uma equipa vença ao invés de outra? Jogos combinados, descanso de jogadores combinado, falta de intensidade combinada? Tudo isto abre demasiadas portas a esquemas que eu não gosto de ver em lado nenhum, muito menos no meu querido futebol.
José Maria Reis
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