O Bode-Expiatório do Futebol
Ameaçados, insultados e ofendidos pelo simples facto de desempenharem uma profissão que mexe com os corações do mundo.
No futebol, como o conhecemos hoje-em-dia, a figura do árbitro é indispensável e fundamental para regular e fazer cumprir as regras do jogo. No entanto, nem sempre foi assim. Só desde 1868 é que começou a aparecer uma figura/vislumbre daquilo que conhecemos hoje, que nem tinha sequer autoridade para marcar infrações durante o jogo. A autoridade do árbitro só passou a ser absoluta a partir de 1894, com a criação de novas leis para o jogo e com a sua consequente modernização.
Desde a introdução da figura do árbitro no futebol, foram-se criando e entranhando na população algumas ideias falsas sobre a sua profissão, com base em estereótipos e auxiliados por alguma falta de conhecimento sobre o jogo. Os árbitros do futebol moderno têm sofrido bastante com a mudança de mentalidades e, apesar de beneficiarem com a tecnologia em certos aspetos (VAR), também estão muito mais sujeitos ao escrutínio público, tanto dos media, como das redes sociais.
A ideia de que a inserção de um árbitro durante os 90 minutos de jogo iria trazer classe para o “Desporto Rei” tem-se vindo a dissipar e infelizmente a figura do árbitro tem sido cada vez mais espezinhada, escrutinada, posta num alvo, onde o insulto, a ameaça ou mesmo a agressão são as armas de eleição.
Com isto, há algumas ideias que são necessárias desmistificar e que estão incrustadas na cabeça dos adeptos e de alguns treinadores e jogadores, que deviam, mais que ninguém, saber melhor.
A ideia de que os árbitros não são punidos, nem sofrem consequências por más prestações
Atualmente, a sensação de impunidade que existe em relação aos árbitros é atroz. E a justificação para esta falsa ideia, é mais uma vez baseada em estereótipos, auxiliados por alguma falta de conhecimento sobre o jogo e sobre as suas regras.
Pelo menos uma vez já devem ter ouvido falar do conceito da “Jarra”, mas talvez nunca tenham bem compreendido do que se tratava. Fazendo uma comparação que irá facilitar as coisas, um árbitro “estar para a Jarra” está para os árbitros como o “ficar no banco” está para os jogadores. Ou seja, quando os atletas em causa (sim, os árbitros também são atletas) tiveram más prestações e, por isso, foram punidos ou descartados.
Tal como o jogador é expulso ou castigado por estes maus comportamentos que violem os regulamentos, o mesmo acontece aos árbitros, estando estes sujeitos a medidas disciplinares e sanções tais como “jogos de fora” ou “de castigo”.
No início de cada época, o objetivo do Conselho de Arbitragem da FPF (Federação Portuguesa de Futebol) é de escolher os árbitros que acredita estarem em melhor forma para os jogos ao longo da época, tendo em atenção a necessária gestão física e emocional dos mesmos. Portanto, quando um árbitro faz um mau trabalho/tem uma má prestação, sistematicamente, o Conselho de Arbitragem não o nomeia no fim de semana seguinte, afastando-o, por vezes durante semanas, dos jogos mais mediáticos.
É preciso assentar algumas ideias sobre este falso estereótipo que se vem criando desde há muito.
1. Os árbitros têm uma classificação e são observados em todos os jogos oficiais que fazem, sendo-lhes atribuída uma nota no final de cada jogo. Isto significa que quando um árbitro tem uma má prestação, terá, consequentemente uma má nota, o que se repercute na sua classificação final. Muitas vezes os árbitros são despromovidos por força de um conjunto de más atuações. Quando isto acontece, regra-geral, acabam a sua carreira mais cedo.
2. Como consequência de más prestações, os árbitros internacionais podem ainda perder as insígnias da FIFA, ou até se estivessem “na calha” para chegar a internacional, nem sequer chegam a alcançar essa posição.
3. A profissão que desempenham está associada diretamente, e infelizmente é essa a realidade que se observa, ao escrutínio público, por consequência de um mau jogo, ou mesmo só pelo facto de serem árbitros. Ameaçados, insultados e ofendidos, pelo simples facto de desempenharem uma profissão que está associada aos media e que mexe com os corações do mundo.
4. A questão financeira é, também, uma das mais importantes a ter em conta e que faz mais diferença nas contas dos árbitros. O salário é pago por jogo, o que condiciona bastante o orçamento familiar se o árbitro for punido por más prestações, ficando em casa, sem receber.
A ideia de que os árbitros não se lesionam
Tal como já disse, os árbitros têm uma classificação e são observados em todos os jogos oficiais que fazem. Como tal, não estão livres de lesões, onde o tempo de recuperação, por vezes, é tão elevado como o de qualquer jogador, sujeito também a fisioterapia, num período cheio de desilusões; de expectativas frustradas; de processos de emagrecimento e de aumento de peso; de ver os colegas na televisão a fazer o que gostam mais, estando em casa, lesionados e sem condições para arbitrar. E depois há todo o processo de estar ou não preparado para regressar aos relvados.
É certo que um árbitro não está sujeito ao desgaste físico do choque com o adversário, nem o desgaste do contacto com a bola. Porém, isso não invalida o facto de o esforço físico ser grande, com treinos diários, ou bidiários, cursos, jogos com 12/13 Km percorridos com ritmos diferentes e que todo esse trabalho diário envolve muito esforço e dedicação. Os árbitros também são atletas, também se lesionam e têm muitos fatores adjacentes à sua prestação, que muitas vezes não justificam os erros dentro de campo, mas pode ser que provoquem mais empatia e tolerância da massa futebolística, para com estas figuras do futebol.
Ideia de que o resultado é ditado pela arbitragem
Os árbitros erram, como qualquer ser humano e a explicação é simples de se compreender. Porque têm um processo de decisão em que, ou acertam, ou erram, faz parte do trabalho. De facto, há árbitros melhores, ou com mais competências que outros, tal como há jogadores melhores ou com mais “jeito para a bola” que outros. Simplesmente, é mais fácil julgar e criticar a arbitragem, porque são elementos externos à equipa, que decidem apenas como dizem as leis e isso às vezes faz um bocadinho de “comichão” aos “entendidos” do futebol.
Os erros são transversais, ou seja, numa eliminatória com 2 jogos, tanto num como noutro, o árbitro pode ter muito peso e influência nas decisões que toma e isso pode garantir a passagem de uma equipa para a próxima fase. No entanto, num campeonato com 34 Jornadas, o melhor é o campeão e o que conta acaba por ser a consistência e a capacidade de cada equipa de superar as variáveis que não controla, por exemplo, a arbitragem.
Tendo já abordado bastantes ideias, parecia lógico terminar o texto com mais uma que está na base da escolha do título para este texto. Ao longo destes últimos anos, no futebol moderno, a presença da chamada, por muitos, Nuvem Negra (expressão que caracteriza a imagem dos árbitros) tem vindo a ganhar a sua força.
Palavras como “Desmancha-Prazeres” ou “Bode-Expiatório” são só algumas com hífen (-), porque há tantas outras para descrever o que os adeptos pensam da figura do árbitro. Cresce um sentimento de intolerância relativamente ao apito, que ganhou força com a introdução das transmissões televisivas, onde o erro é facilmente observado e posteriormente criticado, contestado e escrutinado por todos os adeptos.
Tem que existir, pelo menos, uma tentativa de humanizar o papel do árbitro e mostrar aos “consumidores de futebol”, que boas e más decisões nada têm que ver com atuações deliberadas ou estratégicas. A maioria das pessoas não quer aprender as leis, ou sequer compreender a visão de quem decide, apenas saber se a opinião do “especialista” valida a sua.
Muitas são as ideias que passam pela cabeça de um árbitro durante um jogo, mas uma das que os motiva e que não lhes permite desistir à mínima contrariedade é sem dúvida esta:
“Servir de arma de arremesso é a antítese que nos move”. - Duarte Gomes
Afonso Silva
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