No final do dia, é isto. Ontem, o futebol venceu. O futebol ontem venceu porque pudemos ver coroado um belíssimo futebol espanhol, lançando-nos de volta para os tempos áureos de Xavi, Iniesta, Busquets, David Villa, entre outros. O futebol venceu porque vimos Luis De La Fuente, técnico que até então era visto com alguma desconfiança, sagrar-se campeão europeu após passagens por toda a formação espanhola. Não só por isto, mas também pela elevação de Lamine Yamal a estrela mundial, pelo torneio de Nico Williams, Fabián Ruiz e até do melhor jogador da competição, Rodri, ou até pelo marca que deixa Dani Olmo após a lesão de Pedri. Ontem, o futebol venceu, a Espanha venceu.
Não era, de todo, descabido imaginar uma vitória inglesa na partida. Seria, no entanto, um ato de crueldade da parte do futebol. As seleções foram, durante todo o torneio, o oposto uma da outra. Do lado espanhol, vimos a essência da “fúria roja”. Vontade de ter bola, ir para cima do adversário, assumir o comando do jogo, extremos virtuosos e diferenciados sem medo de procurar o 1x1, e, acima de tudo, vimos uma seleção marcada pela coletividade e cooperação existente. O selecionador espanhol não olhou para onde jogavam estes jogadores, não olhou para as suas idades, muito menos para o seu estatuto. De La Fuente olhou para o seu modelo de jogo, e escolheu os jogadores mais adequados para ele, sem qualquer hesitação.
Gareth Southgate é, para mim, uma das grandes desilusões deste Europeu. Não retirando o mérito de conseguir chegar à final do Europeu (pelo lado mais fácil das eliminatórias), não deixa de ser óbvio o pouco aproveitamento feito desta geração inglesa, provavelmente a mais talentosa (a nível dos seus jogadores) dos últimos 30 anos. Jude Bellingham foi o melhor jogador do campeonato espanhol, Phil Foden foi o melhor jogador do campeonato inglês, Harry Kane foi o melhor marcador do campeonato alemão, e mesmo assim, nenhum deles fez um europeu superior a um “miúdo” que tinha 12 anos quando a pandemia da Covid-19 apareceu. A Inglaterra não sentiu, durante basicamente toda a competição, qualquer problema em esperar, dar a bola ao seu adversário, e procurar ferir o oponente em pequenos contra-ataques, ou lances isolados onde a qualidade individual dos seus jogadores resolvesse a situação.
E até foi funcionando, tivemos o pontapé de bicicleta de Bellingham contra a Eslováquia, a inspiração de Saka contra a Suíça, e até o golo de Watkins contra os Países Baixos. No entanto, o rasgo de inspiração de Cole Palmer ontem à noite não chegou para iludir mais uma vez os deuses do futebol que, deparados com toda a qualidade (e apoio) com que “nuestros hermanos” contavam, não tiveram outra hipótese que não fosse a vitória de Espanha, sendo agora o país com mais vitórias na competição.
A primeira parte desta tão aguardada final decorreu da maneira que era expectável. Sonolenta, adormecida, sem ideias destacadas, e com pouquíssimas oportunidades de perigo. Os ingleses voltaram ao 4-2-3-1, e, numa execução que prova ter existido estudo inglês, Phil Foden reuniu com o seu colega de equipa no Manchester City, Rodri, e decidiu que o mesmo não teria qualquer aprovação para pautar e ordenar o jogo espanhol, como haveria feito até então, ao longo do torneio. A marcação individual de Phil Foden complementava o duplo pivô Rice-Mainoo, que caíam nos criativos Dani Olmo e Fabián Ruiz. O plano de Southgate resultou na perfeição. Sem a influência dos médios no processo ofensivo, Nico e Lamine eram as únicas soluções disponíveis, tornando-os excessivamente previsíveis. A Inglaterra, como tinha vindo a acostumar todos os espectadores ao longo do torneio, não demonstrava interesse em marcar, tentando apenas em não sofrer, injetando o seu adversário com o veneno da monotonia e do sono. Intervalo.
No entanto, há quem veja mais além. Há quem veja para lá do não perder, e procure ganhar. De La Fuente percebe que é Rodri o desbloqueador de toda a situação e, ao intervalo, também devido a uma pequena lesão, prescinde dos seus serviços, e lança Zubimendi na partida (grande exibição). Sem Rodri, e tendo o médio da Real Sociedad características diferentes, os ingleses perderam-se posicionalmente. Esta “quebra de tensão” inglesa levou a que, ainda sem cinco minutos decorridos na segunda parte, Lamine Yamal recebe-se a bola na ala, e, com um movimento já característico, rompe pelo meio, descobrindo Nico Williams solto na ala contrária. O passe entrou, o público levantou-se da cadeira na expectativa, e o número 17 dos futuros campeões europeus faturava novamente no Europeu.
A vantagem justificava-se ainda mais nos minutos seguintes. Lamine, Nico, Morata e Olmo voltaram a criar situações muito apertadas para Jordan Pickford, que evitava uma autêntica humilhação. Já sem quaisquer opções, vendo-se completamente arredado da partida se nada executasse, Southgate viu a receita da meia-final, e, num ato de desespero, lança Ollie Watkins e Cole Palmer para a contenda, numa tentativa desmedida de alterar o final da história que parecia cada vez mais ter um final feliz para a Espanha.
No entanto, enganando mais uma vez os deuses do futebol através da qualidade individual dos seus executantes, Saka cavalgou por aí fora após um passe de Bellingham, o mesmo que iria voltar a receber a bola do extremo do Arsenal, ajeitando a bola no mais subtil movimento para que o recém entrado Palmer a distanciasse de Unai Simón, que viu ainda um ligeiro desvio dificultar a sua já complicada missão. Num golpe de teatro, iludindo tudo e todos, os ingleses voltavam ao jogo, e o futebol poderia estar de volta a casa, para desgosto dos adversários.
O golo inglês lançou a loucura comportamental. Movimentos levados a cabo pela energia, pelo golo, e com pouca racionalidade, era o ímpeto inglês. Durou pouco, uma vez que Southgate, alarmado pelo pensamento e visibilidade de ver os seus pupilos a escaparem-se da sua monotonia, deu ordens para acalmar as tropas, e voltar a encaixar naquilo que pretendia, esperar pelo adversário e ter paciência.
E, voltando ao que havia sido toda a segunda parte, os espanhóis, sedentos de resposta, alavancaram-se pelas suas rápidas transições, sempre à espreita da oportunidade perfeita, da falha no bloco inglês. Falha essa que apareceu quando Olmo descobre Oyarzabal, que havia substituído Morata, para o avançado da Real Sociedad abrir na largura em Cucurella, que, com um cruzamento rasteiro e seco, volta a encontrar o basco, que desvia a bola para dentro da baliza. Pickford nada pode fazer, e a justiça estava reposta. A Espanha estava em vantagem, tendo sido a única seleção que realmente quis levar o caneco para casa.
Quando tudo já parecia fechado e acordado, Dani Olmo teve ainda tempo de ser herói, e com a sua cabeça, que tanto usou para pensar o jogo espanhol, cortou, em cima da linha, um golo certo. O grito em seguida ficará certamente a ecoar naquele estádio. Um grito de revolta, alívio, felicidade e emoção. Um grito de campeão europeu.
A Espanha é a nova campeã europeia, e o futebol venceu. Venceu porque, como referi no primeiro parágrafo, tivemos Nico e Lamine a assumirem-se como estrelas do futebol mundial, Rodri a confirmar que merece a Bola de Ouro, Fabián Ruiz e Dani Olmo a assumirem que são muito mais do que aquilo que aparentam nos respectivos clubes, Cucurella a passar de patinho feio para peça fundamental, e Dani Carvajal, que, para mim, foi alguém que personificou a união que se sucedeu por toda a nação vizinha. Um dos jogadores mais odiados por toda a Espanha, viu catalães, madrilenos, bascos, sevilhanos, entre muitos outros juntarem-se a uma só voz para defender aquele que, nos outros onze meses do ano, é um símbolo apenas e só do Real Madrid. Isso é futebol, essa é a magia das seleções. Que no futuro existam mais como Carvajal.
Findado o Europeu, despeço-me também de todos vocês, que estiveram comigo ao longo de toda esta caminhada. Foram 51 jogos, mais de 4500 minutos de futebol, todos com análises aqui, no 78. Obrigado também ao projeto, que me permitiu ter a minha primeira experiência a solo, sem a vossa confiança, e o vosso desafio, nunca teria apostado desta maneira em mim. Isto é apenas o início, continuem a consumir 78.
João Pinto