O (Per)curso Difícil dos Treinadores em Portugal
As adversidades de tirar o curso de treinador em Portugal
Os treinadores portugueses têm estado nas bocas no mundo nos últimos tempos. Temos o exemplo da irreverência de José Mourinho ao ganhar 26 títulos, do pragmatismo de Fernando Santos no Euro 2016, ou até das boas campanhas europeias de Jorge Jesus, Sérgio Conceição e Paulo Fonseca. Com tanto protagonismo no mundo do futebol, deve ser um sonho ser treinador, especialmente em Portugal. De facto, era bonito se assim fosse. A verdade é que é difícil ser treinador no nosso país, por vários motivos.
O mais óbvio é o problema da certificação. Os cursos de treinador estão divididos em quatro níveis: nível I/UEFA C, nível II/UEFA B, nível III/UEFA A e nível IV/UEFA Pro. Cada um destes graus permite ser treinador principal ou adjunto numa divisão diferente e daí ser importante existir essa distinção. Há duas formas de obter este tipo de certificação em Portugal.
A primeira é pelas associações de futebol, que veem essa responsabilidade ser-lhes delegada pela Federação Portuguesa de Futebol, a quem por sua vez foi confiada essa tarefa pela UEFA. As associações são responsáveis pela organização dos cursos de nível I e II, enquanto que o III e o IV ficam a cargo direto da Federação. Quem tirar os vários níveis do curso por esta via fica totalmente creditado para exercer a profissão nos vários países tutelados pela UEFA.
Porém, o acesso aos cursos das associações é bastante complicado. Quer dizer, é complicado se não estiveres no meio do futebol. Isto porque existe uma extensa lista de critérios que discrimina os candidatos consoante a já terem sido jogadores de futebol de seleção A, sub-21, sub-19, de primeira liga, de segunda, etc. Resumindo, quem não tiver sido jogador tem raras hipóteses de conseguir a certificação por esta via, devido ao pequeníssimo número de cursos organizados ao ano e de vagas nesses mesmos cursos. Houve até alguns cursos em 21/22 que não abriram por falta de candidatos, mas eram organizados em locais com pouca procura. Enquanto que, em cidades com mais população como Lisboa e Porto, se organizam com sorte 3 cursos ao ano.
Então, se um comum amante de futebol não se consegue tornar treinador por este meio, qual é a solução? Pode sempre tirar o curso pela outra via, ou seja, através de entidades privadas creditadas pelo Instituto Português do Desporto e Juventude. Estas organizações oferecem exatamente a mesma planificação de cadeiras que as associações oferecem. Aliás, se o curso não fosse de qualidade, nem seria aprovado pelo IPDJ. Porém, este curso só concede o nível (I, II), não atribuindo o grau UEFA. Portanto, este curso só é válido em Portugal.
Não obstante ter tido exatamente as mesmas cadeiras que alguém que tenha tirado o curso pela associação, quem tirar o curso até ao nível II pelo privado está impedido de ter o UEFA B, não podendo ter a ambição de trabalhar no estrangeiro. A agravante é que os cursos da FPF e do privado, apesar de serem idênticos, não têm equivalência entre si. Ou seja, um treinador não pode concluir o grau I no privado e tirar o grau II nas associações. Isto provoca claros constrangimentos na tentativa de um treinador fazer carreira em Portugal.
Agora deve-vos estar a surgir uma pergunta: “Se as certificações do privado têm qualidade, tal como reconhecido pelo IPDJ, por que é que a FPF não lhes delega a capacidade de atribuir graus UEFA?” Sim, isto seria possível. A UEFA poderia fazê-lo diretamente, porém, também o pode a Federação, visto que viabiliza a equivalência deste grau com algumas instituições de ensino superior, como por exemplo, com a Escola Superior de Desporto de Rio Maior na licenciatura de Treino Desportivo. A resposta à pergunta é simples: a FPF não atribui essa equivalência para poder monopolizar e lucrar com a realização dos cursos.
Face à impossibilidade de aceder aos cursos das associações e face à situação pouco ideal que é conseguir a certificação pelo privado, os aspirantes a treinadores muitas vezes ou são obrigados a conseguir essas habilitações em países como Escócia e Irlanda, onde os cursos não são tão completos, mas são mais acessíveis e rápidos; ou muitas vezes treinam sem estarem habilitados para tal, estando inscritos como delegados ou adjuntos. Não ter a formação adequada para o nível que se está a treinar pode ser muito perigoso para o desenvolvimento dos atletas, contudo, em Portugal, também não se criam condições favoráveis à obtenção da certificação.
Apesar de ter o curso não ser obrigatoriamente sinónimo de uma maior qualidade (o maior exemplo é a conquista da Liga Bwin por parte de Rúben Amorim, que na altura não tinha o nível adequado para ser treinador principal de primeira divisão), é importante para garantir que o futebol em Portugal se esteja a desenvolver de forma correta, especialmente ao nível da formação. Independentemente destas preocupações, a Federação e as associações transformam a obtenção do curso no maior inimigo dos treinadores em Portugal.
A solução passa por uma das seguintes opções: ou existe uma maior abertura e investimento das associações de forma a serem organizados mais cursos, especialmente nas grandes metrópoles do país, permitindo uma igual competição entre ex-jogadores e comuns amantes de futebol; ou a Federação aceita a competição do mercado e delega a capacidade de atribuir graus UEFA também aos privados, passando a ter como principal foco o desenvolvimento dos treinadores e não o lucro.
Desta forma, solucionava-se um dos maiores problemas dos treinadores em Portugal. Obviamente que existem outros, principalmente a falta de investimento no futebol nas ligas não profissionais, mas isso fica para outra reflexão.
João Blanco