A soberania das americanas terá chegado ao fim?
Terá tido o futebol europeu uma evolução inesperada ou terão os EUA adormecido na sua própria hegemonia?
Se noutros tempos olhámos para as americanas com a sensação de que jogavam um futebol inatingível, hoje essa tendência não se mantém. As norte-americanas foram as primeiras e mantiveram-se no topo durante 30 anos, só que tudo tem um fim. As luzes da ribalta do futebol no feminino rumaram, de vez, para a Europa e não parecem de lá querer sair.
É inegável a importância histórica da seleção feminina dos EUA e tudo o que conseguiram mudar nesta modalidade. Foram quatro vezes campeãs mundiais e olímpicas e lideraram, de forma ininterrupta, o ranking da FIFA, desde 2014 até 2022. Como se estatisticamente a sua liderança não bastasse, as norte-americanas foram-se sempre afirmando socialmente como vozes ativas na luta pela igualdade no futebol. O que talvez não esperavam era que o futebol europeu se emancipasse de tal forma que roubaria o protagonismo ganho ao longo destes anos.
O Mundial de 2023 foi o exemplo mais gritante desta nova realidade, com resultados que parecem ter surpreendido até a própria seleção americana. Os EUA estavam de tal forma confiantes no tricampeonato que escolheram esta “esperada” conquista para gravar uma série da Netflix que acompanhasse a caminhada rumo ao título.
A fase de grupo foi a pior de sempre, uma vitória e dois empates, quando, no conjunto de todos os mundiais já participados, tinham tido um total de 20 vitórias, três empates e uma derrota. Foi frente a Portugal - que merecia, peremptoriamente, a vitória - que fizeram a pior exibição deste campeonato do mundo, onde foram salvas por um poste depois de um “quase golo” de Ana Capeta.
Como se tudo isto não fosse suficiente para que os alarmes soassem, a eliminação precoce, nos oitavos de final, frente à Suécia, deixou claro que estava instalada uma crise do “soccer” feminino.
Carli Lloyd, antiga capitã das americanas, arrasou os festejos das colegas depois de terem feito uma péssima exibição e quase terem ficado pela fase de grupos.
Mas então o que pode justificar esta quebra das americanas? Será que é suficiente afirmarmos que, apenas, foi a Europa que teve um crescimento galopante?
Se em tempos os EUA foram os precursores de um sonho, hoje a Europa faz esse sonho ir mais além.
Mesmo que as estatísticas, até então, não tenham demonstrado fragilidades do futebol nos EUA, a verdade é que são alguns os problemas estruturais nesta modalidade.
Um deles é a clara estagnação na competitividade da NWSL - principal liga feminina de futebol - onde, praticamente, é composto por jogadoras americanas. O impacto que isto pode ter deve-se, essencialmente, à falta de modernização do futebol, na medida em que a liga não foi capaz de acompanhar aquilo que passou a ser praticado na Europa, mantendo-se na sua bolha “fechada” com o futebol de sempre. Na seleção, o problema mantém-se, de tal forma, que das 23 jogadoras convocadas, apenas a avançada Lindsey Horan joga fora dos Estados Unidos, ao serviço do Lyon, e as seleções de maior referência - Espanha, Inglaterra, Países Baixos - não têm jogadoras representadas na NWSL.
Outra questão fundamental, e que se trata com a estrutura de formação, está relacionada com a ligação que existe entre o desporto e o ensino. Esta relação umbilical que está bastante presente nos EUA, independentemente da modalidade praticada, já não é capaz de acompanhar o forte investimento que tem sido feito nos países europeus.
Esta maneira de formar jogadoras servia quando o país tinha o monopólio no futebol feminino profissional, hoje, parece, manifestamente, insuficiente. Isto acaba por se relacionar com o tipo de jogadora americana, que se caracteriza por ter uma forte capacidade física e uma estratégia muito regrada dentro de campo, contrariando o futebol europeu, mais técnico que privilegia a criatividade.
Estes fatores explicam a grande dificuldade que o Team USA está a ter para fazer a mudança geracional que os tempos obrigam. Jogadoras como Morgan, Crystal Dunn ou Kelly O’Hara já não são as jogadoras de outrora e as “estrelas” emergentes, como Tritiny Rodman ou Sophia Smith ainda não conseguiram ser uma força motriz da “nova” equipa norte-americana, sendo-lhes, muitas vezes, criticada a aparente falta de uma mentalidade vencedora.

Na Europa, a liga inglesa é uma das maiores referências na evolução e mediatização do futebol no feminino, de tal forma que conseguiu chamar as maiores estrelas, como Sam Kerr, que trocou Chicago Red Stars pelo Chelsea. A liga espanhola tem-se conseguido afirmar - mesmo que só se tenha profissionalizado na época 2022/2023 - principalmente devido ao acordo com a La Liga de 42 milhões de euros garantidos até 2027, sendo uma garantia de investimento e empenho na modalidade.
O exemplo de Espanha é muito explicativo sobre a importância que é dada aos escalões de formação. Em 2018, a seleção espanhola foi campeã mundial sub-17 e vice no sub-20. Em 2022, conseguiu arrecadar o troféu nas duas competições, nos dois escalões.
Depois de toda esta reflexão, não consigo responder à questão do título de uma forma linear. Penso que, inevitavelmente, o futebol no feminino praticado nos EUA precisa de se adaptar ao crescimento que a modalidade está a ter em todo o mundo. Apesar de continuarem a ser uma referência incontornável e de, com toda a certeza, continuarem a ter os holofotes à sua volta, não têm mais o domínio absoluto. Mais recentemente, a NWSL parece querer voltar a ter protagonismo e tem ido buscar várias jogadoras à Europa, o que é extremamente positivo para revitalizar esta que, independentemente de tudo, permanece como uma das melhores ligas do mundo.
Hoje, os Estados Unidos não competem, somente, com a sua própria evolução e é preciso que não se deixem ficar para trás, para o bem do futebol.
Mafalda Ferreira Costa
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