As situações no mundo, seja do futebol ou não, que mais revoltam uns, são também as mais normalizadas por outros. Já evoluímos tanto e tão pouco mesmo tempo. Passámos de ver futebol a preto e branco para ter um drone durante 90 minutos a sobrevoar o estádio a filmar o jogo, mas um jogador ainda tem de levar com uma banana quando vai bater um canto. Passámos de ter golos marcados pela mão de Deus, a discutir se foi o mindinho ou o anelar a tocar na bola no lance do golo, mas um jogador ainda tem de levar com onomatopeias cada vez que toca na bola. Passámos de ver golos a serem anulados quando a bola já quase tinha tocado na rede, a verificar se a bola ficou 1 ou 2 milímetros em cima da linha de golo ou não, mas um jogador ainda é insultado quando a única coisa que fez durante o jogo foi magia com a bola nos pés. O muito que evoluímos infelizmente não chega para compensar tudo o resto que pouco ou nada evoluiu.
Tudo começa muito fora do futebol. A intolerância, a discriminação e a marginalização projetam um problema de fundo presente na nossa sociedade desde que existem registos. Seja com nacionalidades, cor de pele, orientação sexual, vestuário ou comida favorita, o instinto humano parece que tem um fascínio por evidenciar a diferença e tratá-la dessa mesma forma. O conflito interior em não conseguir acolher alguém que em nada se assemelha a nós encadeia qualquer tentativa de integração daqueles que surgem na nossa sociedade. A verdade é que parte tudo de um pressuposto errado, a inexistência de semelhanças. Na verdade, a única diferença que existe é duas pessoas terem nascido a x quilómetros de distância ou uma ter uma presença mais forte de uma enzima no corpo do que outra… realmente, parece-me um crime que justifica uma destilação de ódio durante 90 minutos consecutivos…
A ignorância existente e os estereótipos criados há décadas permanecem até aos dias de hoje alimentados pelos autointitulados como “iluminados” políticos, que utilizam as inseguranças e o preconceito gerado para exponenciar a sua intervenção na vida de cada comunidade. Os cidadãos, sendo o espelho da sociedade e dos seus membros mais relevantes, levam para o seu dia-a-dia um discurso de ódio e medo que acaba por afetar a vida de outros tantos elementos que fazem parte dessa mesma comunidade, que vieram, alguns deles, de outro país para nos presentear com os seus talentos e em vez de lhes serem dirigidos agradecimentos, têm de levar com os mais reles insultos, ainda para mais a ver com uma característica humana como qualquer outra.
Ainda que este tema tenha novamente surgido com Vinícius Jr., após inúmeros casos com o mesmo, em diferentes estádios da La Liga, lembramo-nos de muitos outros casos com jogadores de vários campeonatos onde a xenofobia e o racismo tiveram lugar. Não sendo uma agravante, porque todos os humanos são iguais, mas apenas uma tristeza pessoal, muitos destes casos acontecem com os craques de cada campeonato. Os que se acham amantes deste desporto, com a desculpa interior, talvez para se sentirem menos culpados, de que insultam os adversários para ver a sua equipa vencer, contribuem para uma crescente desmotivação por parte dos melhores do mundo. Em vez de sermos presenteados pelo talento que foi dado a tantos jovens que por aí andam, a tristeza nos olhos dos mesmos não enganam aquelas que olham para o futebol de uma forma humana, desprendida e inspiradora. Qual a vontade de um jogador entrar em campo quando sabe que vai ser alvo de ataques durante todo o jogo apenas por ser jogador da equipa adversária? Ser julgado por aquilo que faz em campo, as suas atitudes humanas ou futebolísticas no desporto, faz parte e sempre fará do futebol. Mas ver a sua integridade e honra serem atingidas por quem desconhece o lado empático do desporto, nunca poderá ter lugar nos nossos estádios.
A verdade é que nada disto vai acabar enquanto as pessoas responsáveis pelas ligas não tomarem medidas drásticas, que levem os clubes e adeptos a perceberem o quão penalizados são se tal coisa acontecer com a sua equipa. Se é possível identificar os adeptos que praticam tal ato, então devem ser excluídos de voltar a entrar em estádios de futebol durante anos, se for recorrente, para sempre. Se mesmo assim continuar, então tem de passar a haver jogos à porta fechada, quanto mais reincidências houver, mais jogos de castigo são aplicados. Em último caso, tem de haver lugar a dedução de pontos no campeonato, mesmo que isso implique descidas de divisão. Muitos destes adeptos só percebem esta linguagem, se fazem de tudo para que a sua equipa vença, então só a penalizar seriamente o seu clube de coração é que os faremos perceber o impacto negativo que estão a ter no mesmo.
Nada disto força a mudança de mentalidades, mas temos de começar por algum lado. O futebol tem uma grande presença na sociedade e por essa mesma razão deve ser um exemplo e deve moldar comportamentos. Seria um grande passo na eliminação deste fenómeno, se no futebol não existissem indivíduos que julgam os jogadores, que querem proporcionar-lhes um espetáculo, apenas pela sua cor da pele, então estaremos muito mais perto de uma sociedade justa, empática e solidária.
Dança Vini, dança!
Miguel Rocha
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