13 anos depois de me ganhar num jogo de PSP, eu e o Aimar chorámos juntos
Eu e o Aimar, que nunca nos vimos, acabamos por jogar, lado a lado e um contra o outro, por duas vezes na minha vida.
Posso estar errado, mas creio que no dia 21 de março de 2010 chovia. Eu, com nada mais que 7 anos feitos, preparava-me para mais um momento frenético na minha curta vida. Uma final entre o meu Porto e o clube de maior parte dos meus amigos na primária, o Benfica.
Não tenho muitas recordações dessa fase da minha vida. Lembro-me da vez em que fui de crista para a pré-primária, mas, por vergonha, a desfiz numa rápida ida à casa de banho, mal cheguei à escola. Também me vem à memória o dia em que fiquei de castigo por me ter demorado a lavar as mãos — deve ter sido mais que isso, certamente — e a minha educadora me fez ficar um intervalo inteiro do almoço a ver os meus amigos jogar futebol sem poder participar. Mas fora dois ou três episódios mais caricatos está tudo envolto em neblina. Tudo menos um par de situações. Futebol, claro.
Lembro-me como se fosse ontem o dia em que, por um qualquer problema na televisão da sala, fui para o quarto dos meus pais enquanto eles jantavam, ver um tal de Cristiano Ronaldo marcar um dos melhores golos da sua carreira… frente ao Porto. Curiosamente, no dia seguinte na escola fui impedido de tentar replicar o feito de Ronaldo — havia demorado muito tempo a lavar as mãos na casa de banho antes do almoço ou lá o que era. Lembro-me de estar no carro com a minha mãe quando soube do 7-0 de Portugal à Coreia do Norte, lembro-me de ver, nesse mesmo Mundial, o Portugal x Brasil no sofá da minha avó e questionar a qualidade da seleção que “sambava” — não conseguiram mais que um empate frente a uma equipa que contava com Duda e Danny a titulares.
Lembro-me, também em 2010, de ser a única pessoa na mesa do jantar, em casa da minha avó, outra vez, a reparar no fora-de-jogo escandaloso do David Villa no golo contra Portugal — até sei que defendíamos a baliza da esquerda. Lembro-me da supertaça que ganhamos ao Benfica quando estava no Algarve com os meus pais e o dono do restaurante — também do Porto — fazia a festa connosco. Mas de todos estes momentos, há um particularmente traumático que guardo comigo.
Voltemos a meses antes deste mundial. A março desse ano. Estou em casa e creio que o dia era de mau tempo. Desde a tarde que a barriga mostra sinais de um pequeno nervosismo e alguma excitação. Posso dizer que, depois de me aperaltar com uma camisola tamanho de criança do Porto — a do patrocínio da Portugal Telecom — e pôr um cachecol para evitar os arrepios de nervoso, fui jantar e depois, direto para o sofá. Esperava ver uma final, esperava ver uma vitória.
Porto X Benfica, no estádio do Algarve, a contar para a final da Taça da Liga, antiga Carlsberg Cup. O jogo começava às 20:45 e eu, que me deitava às 21:30 todos os dias, tive de fazer um choradinho à minha mãe para poder ver o jogo todo. Assim foi.
Ao fim dos primeiros dez minutos o Benfica marca o primeiro de três golos dessa noite. O nervosismo dá lugar ao medo de ser goleado e, pouco a pouco, vou ficando cada vez mais triste. Antes do intervalo, 2-0 num golaço de livre do Carlos Martins. Este golo teve dois aspetos negativos. O primeiro é óbvio, o segundo nem tanto: foi particularmente doloroso ser o Carlos Martins a marcar, pois, na altura, ele era uma figura que me dava algum medo — a cabeça arredondada e pequena era inconfundível e este medo, embora tonto e difícil de explicar, tinha motivos válidos para uma criança de nem 7 anos.
Posso dizer que, a meio da segunda parte, com demasiada vontade de me ir deitar, procurei um escape para aquilo que estava a suceder. Vou buscar a minha PSP e jogo o PES 2010. O objetivo era claro, para mim: jogar um Porto X Benfica na PSP para vingar aquilo que acontecia a 300 km de minha casa. Ora, não podia ter sido pior ideia. Enquanto miúdo, nunca fui um mestre nos jogos de consolas e só mais velho é que comecei a ganhar mais prática. Com 7 anos, decidi colocar a dificuldade no máximo para superar o Benfica da PSP que o Porto da vida real não conseguia. Não devo ter durado 1 minuto sem sofrer golo. Recomecei. Novo jogo, novo golo madrugador do Benfica. Recomecei. E por aí adiante até, na vida real, o Benfica fazer o 3-0 em cima do minuto 90. Nisto, vejo que na minha PSP, o Aimar joga como um deus e volta a marcar. Recomeço.
Recomeço.
Recomeço.
Sempre o Aimar a estragar o único rasgo de felicidade que um rapaz de 7 anos queria ter num domingo triste. Já sabia que, no dia seguinte, iam fazer troça de mim e queria, apenas naquele momento, poder ter algo, poder ganhar. Mas o Aimar marcou outra vez. Uma… duas… três lágrimas fazem um exercício de rapel nas minhas bochechas. Outras tantas se seguem e eu vou-me deitar, como se na cama tivesse algum consolo que ali não estava a ter. É a derrota que mais marcou a minha infância, também por, até no meu jogo de consola, o Aimar me ter ganho também.
Quase treze anos depois, estou no mesmo sofá que estava nessa final, na mesma sala que estava nessa final. É o almoço — e dia — de aniversário do meu irmão e falta um penálti para a Argentina se tornar campeã do mundo pela primeira vez desde Maradona. À minha direita está a minha mãe, claramente expectante pelo remate final que seria do Montiel. Não que estivesse totalmente interessada nisso, mas sabia perfeitamente que o seu filho mais velho, eu, queria aquela vitória da Argentina e de Messi mais que tudo depois de Portugal ter sido eliminado. Ela ouvira os meus gritos a celebrar o golo do Messi frente ao México e sabia o que vinha aí se Montiel carimbasse a vitória. Sabia que, quando a Argentina venceu os Países Baixos e a luz de minha casa foi abaixo nos penáltis, eu entrei num estado de pânico doentio por não saber o que estava a acontecer. À minha esquerda tenho a minha namorada. Ainda mais que a minha mãe, sabe o poder que aquele remate do Montiel teria sobre mim, ainda para mais depois de ver, quando o Messi faz o 3-2 no prolongamento, algumas lágrimas nos meus olhos. Sabia que detestava a seleção francesa e que o meu ídolo máximo neste desporto é o Lionel.
12 anos e 8 meses depois de Aimar me ter ganho um jogo na PSP e me ter feito chorar até adormecer, estamos ambos no mesmo barco. Eu, sentado na minha sala à espera do desfecho e ele, sentado no banco da equipa técnica da Argentina à espera do momento final.
O árbitro apitou, o Montiel correu e rematou. Uma… duas… três.
Na minha sala ficamos os três em silêncio. São um, talvez dois segundos em que se espera uma onda de euforia e alegria que leve tudo à frente. Desta vez não. Um silêncio apenas cortado pelos barulhos dos gatos a andar, da minha avó na cozinha e tantos outros barulhos banais. Nisto, e por estranharem a total ausência de barulho vindo de mim, procuram-me com o olhar para perceber onde se escondem os meus festejos. Apenas vêm gotas de água, tal como, quase 13 anos antes, a fazerem rapel pela minha cara. Cerca de dez segundos depois de ter sido golo, quer a minha namorada, quer a minha mãe, agarram-me e sorriem-me como que a dizer que já podia celebrar e que podia descomprimir de toda a tensão que tinha acumulado desde o início do dia. E é quando me agarram que me sinto em mim e que as três lágrimas dão lugar a outras três e a outras dez e a soluços e fungares.
Nesse dia, 4655 dias depois, chorei mais que naquela noite de 2010, chorei mais do que alguma vez havia chorado por causa de futebol e, certamente, Aimar, a muitos quilómetros de distância, chorou ao meu lado, também para compensar o que me havia feito tantos anos antes.
Pedro Brites
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