A morte dos artistas
Num mundo de máquinas e engrenagens definidas pelos treinadores, há jogadores de antes que percebem o quão efémeros seriam no futebol de hoje.
Riquelme, em declarações para ESPN argentina, afirmou que, se jogasse hoje, não só não teria o mesmo protagonismo que tinha na sua altura como também não tinha certezas em relação a conseguir adaptar-se e jogar o futebol que hoje se pratica. Acrescentou também que o papel dos 5 é considerado muito mais importante que na sua altura e que o “verdadeiro 10” já não existe.
Em várias áreas costumamos ver os vencedores de ontem a terem dificuldade em perceber os vencedores de hoje. O desporto evolui e, acima de tudo, o mundo caminha, por norma para a frente, deixando certos vícios e formas de estar para trás. Está tudo bem nisso e é compreensível que assim seja.
As declarações de Riquelme, a meu ver, em nada estão erradas. O craque não disse que o futebol hoje era mau ou pior. Constatou apenas que era diferente e que teria dificuldades em encaixar nos modelos praticados atualmente. E eu concordo plenamente. Riquelme era o verdadeiro 10. O enganche – o gancho que ligava e unia o jogo, das zonas ocupadas pelos médios até aos atacantes. O jogador que tinha a liberdade para tentar ser único e singular, receber a bola em terrenos mais ou menos avançados e, a seu gosto, distribuir para os avançados criando-lhes oportunidades. Esse era o papel de Riquelme.
Na década de 80, com a Argentina e Maradona, surgiu esse papel novo dentro de campo. Alguém que, à frente de todos os médios e atrás de todos os atacantes pudesse unir e servir os da frente. Um criativo que, naquela faixa do campo faria o que lhe aprouvesse. O 4-3-1-2 entrou na moda e, devido à presença de 3 médios capazes de trabalhar de forma mais disciplinada em termos defensivos, poder-se-ia ter um jogador alheio a isso, cujo intuito fosse apenas um: criar.
Atualmente, a tendência na Europa centra-se em um ou dois estilos táticos principais. As ideias do futebol posicional predominam pelos grandes clubes e a necessidade de trabalhar o espaço ou ocupar terrenos vazios tornou-se religião no futebol de hoje. Pep, Arteta, Xavi, todos eles vivem à volta da ideia de que os treinadores criam um sistema e os jogadores são meros engenhos no mesmo. Estes dão ligação às ideias já existentes e definidas pelo treinador, ocupando certas e determinadas zonas do campo de forma rígida e trabalhando os movimentos previamente definidos.
Vejamos com mais atenção o City de Guardiola e o Barcelona de Xavi. Ambas, equipas que utilizam o jogo posicional, uma forma de controlar e procurar os espaços, ocupando-os de forma criteriosa e rígida. As suas posses são prolongadas, com várias trocas de bola e sem pressa para chegar à frente de ataque. Em ambas as suas ligas, o City e o Barça são as equipas com posses mais longas, menos verticais (no caso do Barcelona, a 3ª menos vertical) e com mias passes feitos por sequência.
Se olharmos para o futebol de De Zerbi, embora diferente, notamos os padrões da “máquina” criada pelo treinador. A pausa para atrair a pressão e, nesse momento, a capacidade de executar uma específica combinação de passes que colocam a equipa numa situação avançada no campo e em igualdade ou superioridade numérica.
Neste tipo de futebol, os jogadores ocupam um papel pré-definido. Isto é eficiente. Ao jogarem, o seu nível de decisão é limitado e sabem que em certas zonas do campo terão algum colega a que passar. Existe uma rigidez fluida que harmoniza e descomplica o processo de decisão pois tenta criar situações de jogo sempre semelhantes e com soluções familiares aos jogadores. E foi este o estilo que venceu a liga dos campões o ano passado e 5 das últimas 6 Premiers. É eficiente. É intuitivo para os jogadores. E não, não é como antes.
O futebol mais caótico que procura a individualidade e a explosão de um ou mais jogadores acaba por desaparecer. Não por vontade, mas conveniência: quem é a equipa de topo que quer por boa parte do fardo do sucesso num grupo seleto de jogadores? E criar um sistema rígido de posição em que isso não acontece é mais simples que criar um sistema de caos para se jogar. Mas é possível.
O futebol funcional/relacional é o que explora a capacidade de os jogadores se relacionarem com o objetivo de, através do seu entendimento e criatividade, poderem progredir no campo. Neste futebol, reina o caos. O que se trabalha não é a relação jogador-espaço, mas sim a jogador-jogador, com a ideia central ser a criação de cada jogada de forma espontânea e imprevisível.
O 1x1 é encorajado e o que se procura é fazer um overload de jogadores na mesma área do campo e, nesse momento, em vez de virar o jogo para fora ou tentar bater longo, insistir na circulação de bola em espaços reduzidos com técnica e risco. Tentar criar situações de superioridade numérica em zonas do campo e fazer a bola progredir pelas áreas mais congestionadas através de tabelas, toca e foge, 3º homem,…
Como vemos na imagem, em vez de procurar alargar o jogo e pedir ao lateral ou ao extremo para se aproximarem da linha, o que se faz é incentivar a circulação em zonas repletas de jogadores e, por isso, repletas de possíveis combinações entre jogadores.
Este futebol sul-americano é a ideia que, neste momento, move a seleção brasileira ou o fluminense, ambos treinados por Fernando Diniz. E embora possa parecer que não, é uma ideia que pode resultar.
Por isso, sim, Riquelme tem razão. O futebol praticado hoje na Europa – e o “na Europa” é um detalhe muitíssimo importante, é mais um jogo de sistema que uma chuva e estrelas cadentes em que, cada estrela joga a seu belo proveito recorrendo à imaginação.
O jornalista Jonathan Wilson afirmou, num artigo do The Guardian que Neymar e Pogba foram malsucedidos no futebol devido à sua forma “antiética” de pensar o jogo e que o futebol moderno vive de sistemas:
“The paradox is that the game at the highest level has never been less about stars. Pep Guardiola, Jürgen Klopp and Mikel Arteta thrive because of systems, complex and rigorously devised structures of pressing and positioning. At the highest level, unless the star is prepared to subjugate his ego to the demands of the whole, he is a problem. Neither Pogba nor Neymar was successful and nor were the clubs for whom they played (winning Ligue 1, for PSG, when they are so much wealthier than the rest, cannot be considered real success). But how could they be, when their way of thinking is so antithetical to the best in modern coaching?”
Uma tirada infeliz, quando se pensa no Neymar do Barcelona ou no Pogba da 1ª passagem pela Juventus. Para além disso, é uma análise altamente eurocêntrica que descura no conhecimento de outros modos e modelos de jogo. Até porque, a seleção que venceu o último mundial, fê-lo dando liberdade a um jogador para criar e marcar em vez de dar uso ao estilo mais badalado atualmente…Chamar de antiético estes casos talvez seja um exagero.
Pedro Brites
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