Raízes do “Pau-Brasil”
O Futebol Brasileiro não é feito apenas de clubes e atletas milionários. Em semelhança com a árvore que se tornou o seu símbolo nacional, na sua raiz encontramos muita luta, suor e sacrifício.
Comecemos com um pouco de história: o Brasil, assim como quase tudo, nem sempre levou esse nome. Assim que chegaram ao território brasileiro, em 1500, os viajantes portugueses estiveram diante de uma terra que inicialmente para eles era uma ilha — surgindo assim a Ilha de Vera Cruz. Contudo, com o avançar das explorações e a constatação de que estavam diante de uma área de proporção continental, o nome a ser dado para a terra recém-descoberta tornou-se um ponto importante a ser debatido.
A confusão manteve-se ao longo do tempo, tendo surgido novos nomes, até que a extração de uma árvore de madeira vermelha usada pelos portugueses para tingir tecidos mudou tudo. Sendo “vermelha como uma brasa”, surgiu assim o Pau-Brasil, cuja exploração foi supostamente a primeira atividade económica dos colonos. Assim sendo, e segundo conta a história, o nome Brasil popularizou-se e ganhou a “disputa”.
A ligação do país em si com a árvore é, assim, inegável. Não foi à-toa que, em 1978, o Pau-Brasil foi declarado, por lei, árvore nacional do Brasil. E onde quero chegar com esta aula? Bem, sendo um símbolo nacional, eu quero usar o Pau-Brasil como alegoria ao futebol brasileiro.
Para começar, o Pau-Brasil é uma grande árvore, imponente e histórica. É indissociável da história do país da mesma forma que o futebol brasileiro o é do futebol com um todo. Depois, o interesse dos estrangeiros, sobretudo europeus, nos seus produtos também pode ser equiparado à constante busca que há pelos jovens craques que surgem no Brasil. Por fim, é um património nacional, assim como o futebol se apresenta como um fenómeno quase inato ao brasileiro, fazendo parte da sua identidade.
Mais voltado para a estrutura da árvore em si, também é possível manter uma comparação: na parte da Copa podemos colocar a elite do futebol brasileiro, isto é, o Brasileirão, a Copa do Brasil, etc., com os frutos e flores a simbolizarem os grandes clubes e atletas do cenário nacional; a medida em que descemos, aproximamo-nos do caule, que pode simbolizar as divisões inferiores, Campeonatos Estaduais e outros elementos que estão na base da hierarquia do futebol nacional; por fim, as raízes, parte que ninguém vê, mas que está lá, que faz parte do todo, nesse caso equivalente aos diversos clubes, atletas e competições semiprofissionais ou até amadoras, que vivem uma realidade totalmente diferente da imposta pelo senso comum.
É normal, quando pensamos em futebol e futebolistas, pensarmos nos grandes nomes, clubes e competições, gerando logo esta ideia de que os jogadores da “bola” recebem todos “rios de dinheiro” e vivem a melhor das vidas. Contudo, isto está longe de ser realidade.
Foi justamente isto que constatou um estudo realizado pela Fifpro, sindicato mundial de futebolistas, por volta de 2016 — o FIFPRO Global Employment Report: Working Conditions in Professional Football. Tendo ouvido quase 14 mil atletas atuantes em 87 ligas de 54 países (cerca de um quinto dos filiados ao sindicado), a pesquisa mostra um retrato diferente do idealizado, com muitos jogadores mal pagos, com contratos precários, vítimas constantes de atraso no pagamento, sem falar nos assédios e ameaças. As estrelas são, claramente, exceção.
No Brasil, por exemplo, o resultado demonstrou que quase metade dos atletas nunca recebeu sequer uma cópia do contrato que assinaram, sendo o sexto país onde a situação é mais grave. Relativamente aos ordenados, 83,3% dos atletas atuando no país recebiam menos de mil dólares por mês, além de 52% terem relatado atraso de salário. Como se não bastasse, os contratos assinados apresentavam uma duração média de apenas 11 meses, contribuindo para uma clara insegurança com a sua situação no clube atual e no futebol profissional em geral.
Apesar do estudo ter sido realizado há quase dez anos, engana-se quem pensa que a realidade hoje é muito diferente. Na verdade, passo a falar, agora, sobre o caso que me fez querer abordar este tema, sobre a realidade que ninguém vê, os nomes e histórias escondidos nas “raízes” desse “Pau-Brasil”: no último domingo (10/9), em jogo válido pela Segunda Divisão do Campeonato Estadual do Maranhão, o São Luís FC goleou por 4-0 a equipa do Expressinho, que acabou eliminada da prova.
O resultado, em si, pouco impactou o Brasil em geral: como já referi, estamos a falar de uma realidade bem diferente da “elite”. Contudo, o relato de um dos atletas do Expressinho após o apito final chamou a atenção. Jaú, de 24 anos, não consegue fazer do futebol, que tanto ama, a sua vida, precisando conciliar os treinos e jogos com o trabalho árduo na construção civil: numa realidade inimaginável para os atletas de competições de maior destaque nacional, a rotina do jogador do Expressinho começa às 5h da manhã, a descarregar tijolos. Mais tarde no dia, Jaú segue do trabalho para o treino e, depois, regressa a mais um trabalho.
Para Jaú, o sonho de jogar futebol é sinónimo de muita luta, de força de vontade, de uma ambição e uma coragem que poucos teriam nas mesmas condições. É o contraste completo com a imagem que temos de alguns atletas, acusados de só quererem aproveitar o dinheiro e o luxo, deixando a paixão pelo futebol no passado. O ainda jovem Jaú que, em lágrimas, partilhou com o Mundo a sua história, é reflexo de uma realidade muitas vezes ignorada, mas que reproduz talvez na mais autêntica forma o que é amar e viver este desporto; uma realidade dura, exaustiva, que exige muita luta, sacrifício, mas que apresenta uma força de vontade e uma paixão sem igual.
Que com a história de Jaú, apenas uma entre milhares de outras semelhantes, inspire-nos a todos, possibilitando o desenvolvimento de um futebol mais igualitário, mais justo, sem a supervalorização dos seus bens (até porque, convenhamos, o futebol tem começado a englobar valores desnecessariamente altos, quer a nível de ordenados, transferências, bilhetes… tudo), especialmente quando essa existe em simultâneo com tantas outras histórias precárias. O futebol é um desporto populacional, de massas, e reflete muito bem a sociedade, refletindo também diversos dos problemas que enfrentamos.
O futebol ainda tem muito o que evoluir relativamente à desigualdade de género, racial — social na totalidade —, e senti que não podia ouvir um relato desses e não tentar, da forma que me fosse possível, trazer este tema para reflexão.
Lucas Lemos
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