Como queremos ganhar? – o dilema dos campeões
Uma equipa que não saiba como quer ganhar é, e será sempre, um fracasso. Portugal, Brasil, e mais meio mundo são a prova disso.
Quando me deparei com a necessidade de escolher um curso específico na faculdade, encontrei a mais típica de todas as encruzilhadas: queres algo que te dê futuro ou algo que te dê felicidade? Obviamente que isto é um pouco uma hipérbole. Existem áreas que tanto saciam a felicidade como são um garante promissor. Mas porque não exagerar? Esta é a questão que nos traz até aqui em todos os pontos e aspetos da vida. O seguro que tem resultado assegurado à partida ou o ousado que nos permite e promete falhar? No futebol não é diferente.
Muitas vezes se pergunta aos treinadores “como vai jogar?”. O treinador, caso tenha vontade para tal, apressadamente nos mostrará um plano e uma ideia daquilo que quer fazer: jogar em contra-ataque, ter posse de bola e trabalhar os espaços, praticar um futebol direto, jogar num modelo de pressão elevado...são ideias que servem de base para o futebol que, na teoria será praticado. Depois, há a materialização da ideia: a formação tática, os papéis dos diferentes jogadores, as combinações, etc. Tudo isto e muito mais, vai ser necessário para responder à pergunta: “como vai jogar?”. E no meio de todas estas informações, o mais importante fica de fora. Esta pergunta ignora o mais principal dos princípios. O fundamento do futebol e que cujo debate vai muito para além daquele que se pode ter dentro das 4 linhas. Não é o “como pode, deve ou quer jogar?” que é a pergunta para queijinho. A verdadeira questão, é: “Como quer ganhar?”
“Quality without results is pointless. Results without quality is boring.”
Dito por Cruyff, este pode ser um bom ponto de partida para as questões que fazem sentido levantar. Antes de qualquer coisa, temos que ver se faz sentido para os treinadores, adeptos e jogadores fazer a pergunta: “como é que quer ganhar?”. Longas dissertações e algum desdém típico depois, uns dirão que é indiferente. A vitória interessa, independentemente da forma, do conteúdo e de tudo o resto que não seja isso mesmo: vencer. Não falo daqueles que, chegando aos últimos minutos do jogo querem que a equipa marque, dê por onde der, obviamente. Não falo de exceções, mas sim da regra.
Existe uma canção muito popular em Portugal, muito cantada na vitória do Euro 2016 que ia um pouco ao encontro deste tópico:
“Pouco importa, pouco importa,
Se jogamos bem ou mal,
Queremos é levar a taça,
Para o nosso Portugal.”
Curioso. Estes são os casos de que falo. Dos casos em que, independentemente do jogo, competição ou adversário, o “como” é subvalorizado em detrimento do “resultadismo” - a ótica que encara o resultado final como sendo o melhor e mais importante avaliador da performance de uma equipa. O futebol pode não ser o melhor, as performances individuais podem não ser transcendentes, mas se o marcador mostrar a vitória por um golo, o “resultadista” vai abanar a cabeça com contentamento: “isto o que interessa é ganhar. 1-0 ou 5-0 vale tudo 3 pontos”, diria. Ora, já voltaremos a Portugal.
Para os que abdicarão de todos os princípios e fundamentos que criaram para garantir uma vitória, a conversa termina aqui. Não por não concordar, mas porque, se para alguns o futebol é apenas isso, então a análise que se segue parecerá apenas um enfeite sobre aquilo que realmente lhes interessa: ganhar. E não se trata de uma questão de liricismos. Existirão treinadores que querem ganhar a jogar um futebol que não agrade aos liricistas e não apenas ganhar. E não há mal nenhum nisso.
“E eu que era triste/Descrente deste mundo/Ao encontrar você eu conheci/O que é felicidade meu amor” - Corcovado.
Num texto passado que escrevi sobre Riquelme, os temas do futebol posicional, o estilo funcional o dinizismo vieram ao de cima. Por essas mesmas razões, e como vamos explorar, uma vez mais, o tema, olhemos para o país que corou Pelé, que morreu no Maracanã uma vez e uma outra no Mineirão e que vive numa procura por si próprio há largos anos.
Naquele que seria o Mundial da redenção de 1950, o Brasil saiu pela porta grande, mas mais pequeno que nunca. O placar mostrava 7x1 e todo um país sangrava, todo um mundo observava de boca aberta. Ainda estamos para perceber a influência deste resultado no mundo futebolístico, social e cultural. Podemos dizer que, esse resultado não é o fundo de um poço, mas sim um fundo a que nunca se pensou chegar e que se estende por diante. Depois de 2014, o Brasil foi eliminado nos dois mundiais seguintes por “seleções fetiche”. Em 2018 pela Bélgica e em 2022 pela Croácia. Depois de 2014 a identidade futebolística do brasil foi cilindrada. Pediu-se respeito pela camisola, compromisso com o país e com as táticas adotadas, pediu-se a “modernização” e o virar de olhos para aqueles “que ganham”. Pediu-se muito. Talvez, o que tenha ficado de fora desses pedidos tenha sido a necessidade da adoção de uma identidade única que só o Brasil pode ter. E a falta de compreensão do problema que o Brasil viveu/vive impediu este de evoluir, durante 8 anos, após um dos, senão mesmo, o maior vexame da história do futebol brasileiro.
Antes do mundial, ninguém previa que a queda do escrete fosse acontecer na meia-final numa derrota por 7x1, obviamente. Mas não deixa de ser curioso que já houvesse referência àquele que era um dos principais problemas da ideologia futebolística brasileira: o eurocentrismo na crítica e na construção da identidade brasileira. A ideia de “se os da Europa jogam bem, nós temos que copiar” levou a que, nos embates contra essas mesmas equipas europeias, o brasil deixasse a sua identidade e naturalidade ficar amorfa e esquecida. E depois de esse 7x1, o que se pedia era, para o maior dos espantos, que o Brasil caísse no mesmo erro novamente: implementar modelos europeus e analisar o falhanço canarinho com um olhar alemão, francês ou inglês.
Identidade e abismo: “Não sei quem sou, que alma tenho.”
É de Fernando Pessoa, mas podia ter sido qualquer um dos que nos últimos anos assistiu o Brasil jogar enquanto seleção de futebol, a autoria desta frase. No rescaldo do Mineiraço, prontamente vieram as críticas à gestão do futebol brasileiro, ao calendário e ao formato “desatualizado” das competições brasileiras. Num artigo feito sobre a tragédia brasileira, um comentador compara o cenário pós mundial 2002 da Alemanha (eliminada na final frente ao Brasil) com o cenário brasileiro. Claro...olhar para a Alemanha. Afirmou que depois de 2002, a Alemanha revolucionou o futebol jovem – com a obrigatoriedade de que todos os clubes das 1ª e 2ª divisões tivessem um centro de treinos para as camadas jovens – e que o Brasil devia procurar o mesmo. Devia tirar os jovens dos campos de terra e do futebol de rua. Que isso era prejudicial e que desde cedo os relvados dos campos de treino são o fruto para o sucesso futuro das próximas seleções que usarão o equipamento amarelo e azul. Em suma, a forma de melhorar, é evoluir em conformidade com o futebol e na mesma forma que a Europa.
Perante esta ideia, e tentando recomeçar a ligar os pontos com aquilo que foi falado no início, chegamos àquele que me parece ser o principal problema do futebol brasileiro atual. Se perguntarmos a muitos destes pensadores do futebol, eles dirão que, à pergunta “como quer ganhar?” a única resposta plausível é dizendo “da forma que der, se for preciso ser-se europeu, que seja.”, implicando isso o sacrifício de tudo aquilo que diferencia o futebol brasileiro (e também sul americano) do resto. Os jogadores são criados no futebol de rua, no futebol com terra batida, bolas de má qualidade, buracos no campo e sem faltas? Sim, e é precisamente por isso que são tão bons como são. O Messi é de que nacionalidade? Maradona? Pelé? Neymar? Ronaldinho Gaúcho? Ronaldo? Riquelme? Qual é a singularidade de todos eles? Onde é que cresceram? A jogar em que campos? Há uma frase muito curiosa do treinador argentino que foi campeão mundial em 78, Cesar Luis Menotti:
"Perguntei a um jogador: você não sente vergonha de que seu pai o veja como se você já não jogasse como fazia no bairro?".
Esta frase resume tudo aquilo que está de mal com o futebol brasileiro, mas também mostra o problema do futebol em pleno século XXI: não se percebeu que, por muito globalizado que este seja, a cultura e a identidade de cada país, cada cidade, cada jogador, cada campo esburacado, cada baliza mal medida nesses campos sem regras e cada bola meio esvaziada é aquilo que, em última análise, dará a glória a quem arriscar seguir essa mesma identidade. Os ingleses, os alemães, os holandeses, olhariam para os jogadores como Ronaldinho Gaúcho como sendo indisciplinados. Os brasileiros, os argentinos e todos os seus pares, viram na sua “indisciplina” a irreverência típica de quem queria ser mais que um bom jogador de sistema. Olhemos para Portugal: Futre e Ronaldo, dois jogadores que faziam a terra levitar ao seu redor com a soberba que os sistemas alemães e inglês nunca tolerariam na base. Messi não é alemão pelo mesmo motivo que o samba não é inglês. Pelo mesmo motivo que o “Brasil europeu” tem sido uma nulidade e pelo mesmo motivo que a Argentina venceu o último mundial – o contexto social e cultural é a base do futebol, não o problema. É o regresso às origens, ao fundamento e às subtilezas que criam as identidades nacionais, locais, etc, que está a chave para chegar mais longe.
La Nuestra – a Argentina de todos as crianças que jogaram em potreros
A Argentina campeã do mundo foi a Argentina que regressou aos fundamentos do funcionalismo tático em redor daquele que melhor compreende o jogo – Messi – dando-lhe a liberdade que ele e tantos outros miúdos tiveram nos potreros (campos de jogo rudimentares) enquanto cresciam como jogadores ao jogarem sem regras. Ele recuava para ir buscar jogo, fintava livremente e fazia tudo aquilo para que tinha liberdade e que a sua própria liberdade e intuição lhe proporcionava. A grande diferença desta Argentina para o Brasil - seleção não menos talentosa – parte do facto de uma querer abraçar a sua identidade enquanto outra discute modelos alemães de evolução, alienados da realidade material que os rodeia. Pela falta de análise e capacidade de perceber os contextos em que diferentes situações se enquadram e por não explorar as melhores características de cada jogador em detrimento de um já alinhavado “sistema” rígido de funções é que acabamos com exemplos como o da seleção brasileira.
Olhemos para o “Dinizismo” estilo tático funcional que procura a relação entre todos os jogadores, favorece as tabelas, os 1x1, as diagonais criadas em campo, as escadinhas, o chegar e não estar. Muitos dos conceitos vão diretamente contra tudo o que é defendido por modelos posicionais: a acumulação de jogadores em espaços menores e o não aproveitamento do espaço vazio.
Comparemos:
Agora, o outro lado:
As diferenças são claras a olho nu. Ambas são duas formas de ganhar, apenas partem de ideias diferentes e dão prioridade à valorização de diferentes aspetos: espaço x relação, sistematização x irreverência. Cabe a quem treina, perceber que sistema ou que amalgama de sistemas funcionará melhor para a sua equipa – veja-se o Malmo, na Suécia, a aplicar alguns padrões semelhantes aos do “Dinizismo”, mas com uma vertente de jogo posicional ainda marcada em certas fases do jogo.
O objetivo de toda esta discussão não é definir o estilo correto, o melhor. Serve apenas para alertar para a incompetência evidente de Federações e treinadores que vão caindo na esparrela tentando fazê-lo. Aplicam fórmulas (muitas vezes europeias) em contextos sem as bases necessárias para as desenvolver. Desperdiçam-se jogadores, matam-se ideias, destrói-se talento.
Pouco importa, pouco importa – o resultadismo como muro à evolução
Voltando para terras lusas e com toda a questão da análise contextual vista, olhemos para o caso recente da seleção portuguesa. Depois da vitória em 2016, ecoou-se o famoso cântico já mencionado acima. E de facto, pouco importou que se tenha jogado mal em 2016. A federação e todos os que apoiavam o projeto da seleção nos seus fraquíssimos moldes foram arrebatados pela eliminação no mundial de 2018 frente ao Uruguai. Desta vez, não existiram cânticos nem alegria pelos jogos mal disputados. Depois, o Euro 2020: eliminados pela Bélgica, também numa fase precoce – visto que esta será uma das melhores gerações portuguesas de sempre. O apuramento para o Mundial de 2022? Por um triz, colocando a seleção de craques como Ronaldo, Bernardo Silva, Cancelo, Rafael Leão, Bruno Fernandes, Pepe, Palhinha, Félix e afins a disputar um playoff de acesso. No mundial, observamos o melhor jogo da era Fernando Santos e a saída nos 4ºs de final. Curiosamente, o que leva à saída do treinador são questões mais relacionadas com balneário que com os resultados.
Porque é que isto aconteceu? Como é que chegamos a 2018, 2020 e 2022 a desperdiçar oportunidades únicas com uma geração incrível? Porque nunca se perguntou como é que se queria ganhar. Aceitaram-se as exibições pobres com o típico “deixar andar” português. Viram-se convocatórias altamente duvidosas, jogos mal jogados, apuramentos aflitos. Nada se fez – os resultados finais suportavam um pouco a situação. Depois, numa situação extra-campo os egos afloraram e, mesmo vendo novidade e uma melhoria que nos deixou a sonhar com algum tipo de futuro na seleção, puff, regressamos ao que nos trouxe aqui. Com Roberto Martinez numa seleção feita de convocatórias influenciadas, má gestão de egos e que não sabe como quer ganhar, não se poderá ambicionar muito mais que aquilo que vem sido a regra. Desta forma, mesmo que uns agitem os papéis que dão conta de uma fase de qualificação imaculada aludindo a uma nova era no futebol português, torna-se impossível ignorar o crime que vem sido feito com esta geração: a banalização pela ausência de ideias, pelo comprometimento da própria Federação e pela ausência de vontade de responder à pergunta: “Como queremos ganhar?”. Sem essa resposta, não seremos mais que uma presença sem identidade. E o futebol, esse sai sempre a perder.
Pedro Brites
As últimas do projeto:
Os Panenka: Mundial 2030. Seleção. “Grandes”.
Europa à Panenka: RB Salzburg, Napoli e Barcelona
Modo Carreira: Futuro e Gestão de Expectativas.
Spaces 78: Mais um Clássico — Análise e Polémicas.
Letra e Vírgula: Uma joia nas bocas do mundo
Cavadinha: Valência e Violência
Damas de Ferro: O melhor de Portugal ainda está para chegar (Mundial 2023).