O Futebol já não fala
Sonhos destruídos e interesses financeiros que orientam o futebol. O declínio do desporto rei.
Na última semana fomos assombrados por histórias de jovens jogadores, entre os 13 e os 22 anos, que se encontravam com várias limitações de liberdade em vários aspetos, tudo sob o pretexto de um futuro no futebol. Mais de 100 jovens foram aliciados virem para Portugal, pagando entre 600 e 2000 euros por mês, apenas para que os proprietários desta academia pudessem lucrar cerca de 150.000 euros por mês com os mesmos. As condições em que estes viviam, as pressões a que eram submetidos e o estado em que eram deixados, não só são um atentado à dignidade humana, como nos têm de fazer pensar sobre o que queremos para o futebol. Tudo isto começa com uma criança, com um sonho, muitas vezes numa parte do mundo com mais dificuldades, e que vê estes recrutamentos como uma oportunidade única na vida. O aproveitamento feito por recrutadores, agentes e todos aqueles envolvidos nestas operações é, não só, julgável em termos jurídicos, como em termos morais. Como é alguém capaz de matar pela raiz a esperança de um jovem jogar futebol durante o maior tempo possível da sua vida? Este caso foi descoberto também muito devido à notoriedade de um dos envolvidos (Presidente da Mesa da AG da Liga), o que nos faz perguntar a quantidade de casos que existem e não são do nosso desconhecimento.
Infelizmente, nos últimos anos, o futebol tem vindo a sofrer uma transformação de fundo que se nada for feito vai passar a ser o procedimento comum… o papel prioritário dado aos agentes de futebol. São muitas as histórias de scouts que iam a divisões inferiores e aos confins do mundo procurar por talento. Quantos destes existem hoje em dia? Diria que muito poucos. Mesmo os que, supostamente, começaram assim, como é que se deixaram consumir pelo poder do dinheiro? A verdade é que a falta de empatia pelo desporto é cada vez mais gritante. Não só impera a lei do mais forte — sendo este, muitas vezes, o único a sobreviver —, como as partes “mais fracas” do negócio são negligenciadas e submetidas a algo que os remete para um papel secundário e quase inexistente. A realidade é que os mais fracos nestas relações são muitas vezes os jogadores, ou seja, a quem devia pertencer a maior parte, se não a totalidade, do poder no seu futuro. As comissões são o centro do negócio. São estas que muitas vezes determinam o novo clube de um jogador, o que demonstra que não são os seus interesses que mais força têm, mas sim os do seu representante. Tal dinâmica faz com que muitas vezes seja o agente a escolher o futuro de um jovem jogador com um sonho — isto, claro, se ele quiser ter o melhor contrato que por aí anda, como muitas vezes é prometido.
Se combinarmos esta influência dos agentes e intermediários com a ascensão dos países de Médio Oriente no futebol europeu, deparamo-nos com uma dupla, muito provavelmente, imbatível. Os clubes destes países, possuídos por sheiks com fortunas muitas vezes bilionárias, proporcionam condições financeiras que estes mesmos agentes não encontram em praticamente mais nenhum lado do mundo e, especialmente, a um nível competitivo tão baixo, ou seja, com a possibilidade de colocarem os seus agenciados com uma facilidade adicional. Em contrapartida, estes países estão beneficiando do chamado sportswashing, que pretende melhorar a imagem destes países (com práticas desumanas para com vários grupos de cidadãos) aos olhos do ocidente.


E, se não quando já víamos a nossa vida a andar para trás, agora é a vez dos próprios jogadores priorizarem uma carreira recheada de dinheiro em vez de prestígio. Jogadores no pico das suas carreiras, com Liga dos Campeões e competições de Seleções Nacionais em vista, relegam todas estas possibilidades para obter um contrato milionário. Podem muitos dizer que esta leva de jogadores para países da Arábia Saudita alcançou um novo nível com a transferência de Cristiano Ronaldo. A verdade é que, ainda que este seja o melhor de todos os tempos e com bastante para oferecer ao futebol, tem 38 anos, não 28. Não sei o que pode custar mais do que ver jogadores como Rúben Neves, Zyech, Bernardo Silva (ainda não confirmado), Benzema, Kante, jogadores que facilmente teriam lugar no melhor onze do próximo ano… Não é concebível, para mim, que uma Saudi League chegue sequer aos calcanhares de uma Premier League, contrate os jogadores que contratar. Por essa mesma razão me espanta esta quantidade de jogadores em pico de carreira que se sujeitam a jogar a nível bastante inferior ao seu.
Mas como já vimos, o dinheiro manda cada vez mais, seja em clubes europeus ou arábicos… Não sei até que ponto tal influência é possível controlar, mas, do ponto de vista do adepto, é indispensável lutarmos pela valorização da essência do futebol, seja ele onde for, onde a qualidade seja a principal característica e os adeptos e jogadores os principais “agentes” do futebol.
Miguel Rocha
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