Qual o Limite da Paixão?
Episódios de violência (de todos os tipos) têm regressado progressivamente ao Mundo do Futebol, mascarados pelo “amor à camisola”. O que falta acontecer para haver mudança?
Na última semana, o autocarro do Fortaleza EC foi apedrejado por adeptos do Sport Clube do Recife após as equipas brasileiras defrontarem-se num jogo válido pela taça regional. O atentado, que implicou no lançamento de pedras e até mesmo bombas para cima do autocarro, levou ao ferimento de diversos elementos do Fortaleza, entre eles seis jogadores, que tiveram de ser hospitalizados.
As imagens divulgadas pelo proprio Fortaleza — nas quais é possível ver várias janelas partidas, cacos de vidros estilhaçados e assentos sujos de sangue — apresentam uma realidade que não deveria ter lugar no Futebol, onde quer que seja.
Assim, ficam os votos de uma rápida e segura recuperação a Titi, Brítez, João Ricardo, Sasha, Dudu e Escobar — os seis atletas hospitalizados — e a todos que tiveram de passar por esta situação traumática e inaceitável.
Basta de Violência no Futebol.
O futebol é, inegavelmente, uma modalidade sem igual, conseguindo ultrapassar a barreira da “bolha” desportiva e tornado-se um elemento importante da cultura humana: quer seja em Portugal, no Brasil, Japão ou na Costa do Marfim, o Futebol move milhares de pessoas através da paixão que cativa.
Estudos estimam que mais 40% das pessoas ao redor do Mundo consideram-se interessadas ou muito interessadas em seguir o futebol mais do que qualquer outra modalidade — em Portugal, por exemplo, o valor atinge os 75%. Se utilizarmos este valor como referência para uma estimativa em escala global, pode-se dizer que cerca de 3,2 mil milhões1 de pessoas gostam de futebol.
É muita gente. Muitas histórias, muitas atitudes, muitos valores — afinal o Futebol, assim como tudo, também é um meio não só influenciado, mas também um propagador de valores. Trabalho em equipa, sacrifício, união, coletividade, trabalho duro; estes são valores que associamos inicialmente ao Futebol (e ao desporto em geral), até porque dos jogadores ao staff e aos adeptos, são milhares de pessoas diferentes unidas e a colaborar por uma única paixão que tem em comum.
Paixão. Seis letras, unidas ao derivar das palavras “sofrer” e “padecer”: «A paixão impede o corpo do seu funcionamento normal e está associada a uma ação incontrolada do corpo sobre o espírito»2. É isto que é o Futebol nas nossas vidas, uma explosão de sentimentos que nos impede de funcionar normalmente, que nos tira o controlo racional. Não é à-toa que muitos se intitulam “loucos” e fazem as mais diversas coisas por esta paixão: horas e até dias de viagem para ver 90 minutos da sua equipa; Tatuagens em homenagem a títulos e ídolos; investimentos regulares em bilhetes, quotas, equipamentos e merchandising; compromissos e necessidades deixadas de lado… É impressionante como as pessoas são capazes de tudo pelo Futebol.
(Vídeo TyC Sports/Instagram)
Impressionante na mesma medida que é preocupante. No fim, este é também o problema: as pessoas são capazes de tudo pelo Futebol. E, se esta paixão proporciona incríveis demonstrações de amor, é igualmente responsável por retirar o pior das pessoas ao gerar esta “imprevisibilidade passional”. Sob o pretexto de “defender as próprias cores”, há atitudes altamente negativas que nos levam ao questionar: qual o limite da paixão?
Nem é preciso sair dos relvados para perceber o que digo. Os próprios atletas, treinadores e outros intervenientes do jogo podem, por vezes, perder a cabeça com o calor do momento e apresentar atitudes e valores que não deveriam condizer com o “jogo bonito”, como as constantes e excessivas reclamações e desrespeitos com o árbitro, as simulações e constantes tentativas de “sacar” alguma vantagem ou também as desnecessárias discussões, confusões e até mesmo agressões de adversários… Dentro das quatro linhas há muito o que melhorar.
Entretanto, é mesmo nas arquibancadas onde os limites são verdadeiramente extrapolados, com esta “loucura” da paixão a resultar em verdadeira violência e crimes. Ainda há poucos dias estive numa conversa sobre Futebol na qual uma pessoa disse que “não podia ir a jogos do dérbi” (no caso, Benfica - Sporting), pois não se sentia segura, o que me fez pensar sobre o meu próprio caso e perceber que eu mesmo deixei de ir a vários jogos, entre várias rivalidades diferentes, pelo mesmo motivo. Quando era mais novo, sobretudo, a minha família nem sequer me permitia ir. Mas faz isto sentido? A que ponto chegamos para que famílias e crianças não se sintam confortáveis de ir ao estádio?


Lembro-me da minha primeira experiência em grandes “clássicos”: um Flamengo - Fluminense. Na altura, tinha eu 12 anos, a caminho do que seria o maior jogo da minha vida. Seria e foi, não posso negar, mas um dos momentos mais marcantes desta experiência não foi poder ver pessoalmente os meus ídolos a jogar, mas o facto de ter presenciado, antes mesmo de entrar no estádio, adeptos dos dois clubes a brigarem e a arremessarem pedras e tijolos entre si. Uma criança, que passava uma tarde em família e estava prestes a realizar um sonho, a ver que alguém pode ser vítima de agressão (ou até mesmo fatalidade) simplesmente por estar a “vestir as cores erradas”.
E isto não é um fenómeno exclusivo das duas equipas do Rio de Janeiro, muito menos um fenómeno raro ou em decadência. Vê-se no Brasil, em Portugal, em Itália, em todo o lado. Não nos esqueçamos que até as celebrações do título nacional conquistado pelo Porto, em 2021–22, findaram no assassinato de um adepto junto ao Estádio do Dragão. Como pode ser aceitável haver esta “subcultura” hostil no adepto de futebol ao ponto de alguém sair de casa para celebrar um título da sua equipa e, mesmo entre “os seus”, entrar em discussões seguidas de agressões e a consequente perda da vida?
Já para não falar que, também em 2022, uma invasão de campo após um jogo de futebol na Indonésia levou à trágica morte de quase 180 pessoas. Cento e Oitenta vidas que se perderam porque a equipa da casa perdeu um dérbi após 20 anos. Um jogo, 90 minutos, 180 vidas.
Já para não falar nos recorrentes “casos isolados” de Racismo nos estádios de Futebol, como podemos ver com Vini Jr, Rafael Leão, Chiquinho e muitas outras vítimas desse tipo de crime. O que falta acontecer? Até quando estas situações gravíssimas seguirão sem uma real punição? E atenção, a resposta não passa pelo policiamento excessivo nem pela exclusão de adeptos nos estádios. O que é preciso é encontrar uma forma de tornar os estádios e o Mundo do Futebol num lugar seguro quer para adeptos, quer para os próprios atletas.
É uma situação que tem sido crescente, e que não podemos normalizar. A violência, a desumanização do adepto rival ou do atleta, o ódio… é preciso encontrar uma forma de contrariar este mal que se tem enraizado no Futebol. Começam com “provocações”, seguem para ofensas, crime verbal e, quando menos reparamos, já alguém foi agredido fisicamente e se encontra hospitalizado — ou sem vida. Qual o limite? Quando é que basta?
Até quando permitiremos que a “Paixão” destrua a nossa paixão? É este o questionamento que fica.
Lucas Lemos
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valor correspondente aos 40% de 8.091.840.938 (população mundial a 24/2/2024),
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