Trabalho (milionário) precário?
O Futebol conta com cada vez mais jogos, mais dinheiro e mais problemas.
Nos últimos anos, o futebol tem vindo a sofrer uma crescente pressão devido ao aumento do número de jogos e competições, o que tem levado à sobrecarga física e mental dos jogadores. A agenda futebolística está mais sobrecarregada do que nunca, especialmente para os atletas que atuam nos principais clubes e seleções e que enfrentam várias competições nacionais e internacionais ao longo do ano. Esta questão tem suscitado grandes debates sobre o impacto que este calendário frenético pode ter não apenas no desempenho dos jogadores, mas também na sua saúde a longo prazo.
Os jogadores de topo enfrentam uma quantidade exorbitante de jogos devido à diversidade de competições. Além dos campeonatos nacionais, como a Liga Portuguesa, a Premier League ou a La Liga, existem as taças e as competições internacionais. Para além disso, muitos são ainda chamados a representar as suas seleções em competições como o Europeu, Mundial, Copa América, Liga das Nações etc. Este aumento no número de competições tem resultado numa sobrecarga de trabalho para os jogadores, que, em muitos casos, acabam por disputar jogos em praticamente todas as semanas do ano, às vezes com séries de jogos a cada 3 dias. A adição recente de competições, como a Liga das Nações da UEFA, e o alargamento do Mundial de Clubes, contribuem e de que maneira para este cenário. O exemplo mais clarividente é, sem dúvida, o novo formato da Liga dos Campeões, onde uma fase de grupos se transforma num conjunto de 8 jogos e equipas de meia tabela a terem de jogar ainda um playoff de apuramento.
O futebol é um desporto extremamente exigente fisicamente. Durante um jogo, os jogadores percorrem uma grande quantidade de quilómetros, alternando entre corridas de alta intensidade, sprints curtos e períodos de menor esforço, o que coloca um elevado stress sobre o sistema cardiovascular e musculoesquelético. Num contexto de calendário sobrecarregado, o corpo dos jogadores enfrenta maiores dificuldades em recuperar adequadamente entre os jogos, o que aumenta o risco de lesões. Lesões musculares, como distensões e roturas, são comuns entre os jogadores que participam em múltiplos jogos numa curta janela de tempo. Além disso, lesões mais graves (como as roturas do ligamento cruzado, por exemplo) podem ocorrer devido ao cansaço acumulado, que afeta a técnica, a concentração e os reflexos dos atletas. Estudos demonstram que jogadores que têm pouco tempo de recuperação entre partidas estão significativamente mais suscetíveis a lesões, o que não só compromete as suas carreiras, mas também afeta os clubes e seleções que dependem do seu desempenho.
Além da carga física, o futebol moderno também exige muito dos jogadores a nível psicológico. A pressão constante para manter altos níveis de performance, combinada com a necessidade de competir em vários torneios com uma elevada intensidade emocional, pode resultar num desgaste mental significativo. A falta de tempo para descansar e desconectar do jogo pode contribuir para problemas como o esgotamento mental, a ansiedade e, em casos mais graves, a depressão. A saúde mental dos jogadores tem vindo a ser um tema cada vez mais discutido no meio desportivo, e o calendário de jogos é certamente um fator determinante.
O calendário congestionado não afeta apenas os jogadores individualmente, mas também o futebol como espetáculo. Quando os jogadores estão cansados, física e mentalmente, a qualidade do seu desempenho em campo tende a diminuir. A sobrecarga pode levar a jogos mais lentos, com menos intensidade e criatividade, pois os atletas não conseguem dar o seu máximo devido ao cansaço acumulado. Os treinadores, por sua vez, muitas vezes são forçados a rodar as suas equipas, rotação esta que afeta a coesão tática das equipas. A química entre os jogadores é fundamental para o sucesso coletivo e a mudança frequente de peças-chave pode levar a uma falta de harmonia dentro do campo. O resultado? Um futebol menos atraente, que acaba por prejudicar os clubes e as competições como um todo.
Diante deste cenário, muitos especialistas e antigos jogadores têm defendido uma reformulação do calendário de competições. Uma das propostas passa pela eliminação de algumas competições, assim como uma paragem mais longa no futebol europeu, semelhante ao que acontece em ligas como a NBA, nos Estados Unidos, ou até mesmo no futebol brasileiro, que, apesar de ter um calendário sobrecarregado, inclui uma pausa entre temporadas. Este período de descanso seria crucial para a recuperação física e mental dos jogadores, permitindo-lhes regressar ao campo em melhor forma.
No entanto, a implementação de qualquer uma destas mudanças enfrenta uma forte resistência por parte das entidades organizadoras e dos clubes. O futebol é, além de um desporto, um negócio altamente lucrativo e a redução do número de jogos implicaria uma diminuição das receitas provenientes de bilheteiras, transmissões televisivas e patrocínios. Assim, existe um conflito de interesses entre proteger a saúde dos jogadores e maximizar os lucros gerados pela indústria do futebol.
As principais entidades que governam o futebol, como a FIFA e a UEFA, têm um papel fundamental na definição dos calendários competitivos. Nos últimos anos, estas organizações têm sido criticadas por priorizarem o aumento de competições, em detrimento da saúde e bem-estar dos jogadores. A inclusão de novos torneios, como a Liga das Nações, e a expansão de outros, como a Liga dos Campeões ou o Mundial de Clubes, exemplifica a tendência para maximizar o número de jogos, ignorando muitas vezes os sinais de alerta vindos de equipas medicas, treinadores e jogadores.
É crucial que estas organizações comecem a adotar uma abordagem mais ponderada. Um calendário sustentável deve ter em consideração não apenas os interesses comerciais, mas também a preservação da integridade física e mental dos atletas. Planear competições de forma mais racional, limitando o número de jogos e proporcionando pausas adequadas, será essencial para garantir que o futebol continue a ser um desporto dinâmico e apaixonante, sem comprometer o futuro dos seus principais protagonistas: os jogadores.
Ainda recentemente tivemos um dos melhores jogadores do mundo atualmente, Rodri do Manchester City, a não afastar a hipótese de os jogadores recorrerem a uma greve para fazer valer os seus interesses. Será preciso chegar assim tão longe para que as entidades que regulam o futebol percebam o que podem perder caso continuem com esta tendência? Esperemos que não.
Miguel Rocha
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